No Brasil, os intelectuais começaram a se voltar para a literatura russa no início do século 20, ainda motivados por lançamentos europeus e traduções indiretas. No anos 1940, Boris Schnaiderman lançou-se em sua aventura como tradutor, culminando em um capítulo incontornável da tradução direta e da difusão da cultura russa no Brasil. Já nos anos 1960 os russos atraíram figuras como Otto Maria Carpeaux e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Foi também nessa década que Aurora Fornoni Bernardini iniciou sua colaboração com o professor Boris no curso de russo da Universidade de São Paulo.
“O que tem de ser tem muita força”: é nessa frase de Guimarães Rosa que a professora Aurora sintetiza seu encontro com a cultura russa, permeado por coincidências da vida, que, por sua ousadia e talento, foram transformadas em “marcos”. Desde o “russinho” por quem se apaixonou, ainda no colegial, e que a levou a estudar o idioma, outras tantas veredas russas foram e continuam sendo percorridas e criadas por ela.
Nesta entrevista Aurora percorre temáticas variadas, de seus primeiros anos como professora de russo a Marina Tsvetáieva e questões da tradução:
A senhora nasceu na Itália, mudou-se para o Brasil aos 13 anos e graduou-se na USP em língua inglesa, mas já no mestrado a arte russa aparece como tema de pesquisa. Como a cultura russa passou a fazer parte de sua vida?
Tudo o que me leva de volta ao passado vem tendo um sabor particular para mim, agora. É que, com o passar dos anos, certas circunstâncias se tornam marcos. Como o fato de haver começado a estudar a língua russa quando ainda aluna do colegial, nos idos de 1958. Para tanto houve a concorrência de muitos fatores: como diz Guimarães Rosa, o que tem de ser tem muita força. Primeiro, devido à fábrica de cloro e soda cáustica que meu pai dirigia nas IRFM (Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo), na época, nós morávamos no limite entre São Paulo e São Caetano, reduto de muitas vilas de imigração russa, onde a costureira, o relojoeiro, o padeiro e até os feirantes ainda falavam russo. Segundo, uma dama russa meio misteriosa (ela dizia que a intimidade perde as pessoas — mas não deixou de contar-me que na casa de sua mãe tocava Tchaikóvski), por estar casada com um engenheiro grego diretor da fábrica de rayon, veio a ser nossa vizinha e, por não ter filhos que lhe fizessem companhia, deu de convidar-me repetidamente à casa dela. Terceiro e mais importante: no autobus que fazia o longo itinerário São Paulo-São Caetano, encantei-me por um russinho e decidi, num ímpeto de romantismo, aprender o idioma dele. Foi assim que numa bela tarde madame Hélène Toole viu-me chegar à casa dela com a gramática da Marina Dolenga debaixo do braço. Nosso relacionamento durou três anos, e, quando ela partiu e eu entrei na faculdade, já havia treinado meu russo rudimentar com os moradores da Vila Alpina, Vila Bela, Vila Zelina e adjacências.
Na época do mestrado, no fim dos anos 1960, a senhora foi convidada para lecionar no departamento de russo da USP pelo professor Boris [Schnaiderman, o primeiro professor do curso de língua e de literatura russa da USP, criado em 1963]. Poderia falar um pouco dessa colaboração?
A colaboração com Boris Schnaiderman, de quem também fui aluna no Curso Livre de Língua Russa, foi longa e aventurosa. Publiquei sobre ele um longo ensaio na Revista da Biblioteca Mario de Andrade n. 67 [o texto pode ser conferido na seção “Relatos” do livro “Aulas de Literatura Russa”].
Imagino que, na época em que começou a lecionar russo, havia pouco material disponível em português, sobretudo pensando em textos teóricos… Qual era a base desse departamento? Qual era o perfil dos seus primeiros alunos? O que eles buscavam ali?
Os primeiros alunos eram ligados à Rússia por laços sentimentais — em geral seus pais ou parentes tinham lá suas raízes —, ou então por laços ideológicos. Ainda uma época em que a URSS era uma grande potência e seus grandes feitos (incluindo o satélite Sputnik) nos impressionavam a todos. Havia o método francês Didier de audiovisual, que usávamos para os alunos iniciantes, com muito sucesso (aprendiam a falar e a escrever em um semestre!), e que existe (na França) ainda hoje. Havia a gramática em português da Nina Patápova. Augusto de Campos (meu ex-colega de curso) e eu ainda utilizamos a gramática de madame Stoliaroff. O meu exemplar havia sido trazido da França pelo meu ex-professor de Literatura Inglesa, George Kenneth Buthlay, com quem, por iniciativa de Paulo Vizioli, fui convidada a trabalhar mais tarde, mas eu já havia aceitado o convite de Boris Schnaiderman. E não me arrependi: a aventura da Rússia seria inigualável. Já da primeira vez em que estive em Moscou (1973), na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba (fiquei admirada pelo zelo e pela abnegação daquelas docentes se debruçando sobre a cabeça de tantos africanos, coreanos, indianos, peruanos, chilenos, brasileiros etc.), trouxe de lá uma porção de apostilas e de manuais especializados que nos serviram muito no Brasil. Material é que não faltava. Quando então passei a dar aulas de literatura, os clássicos foram o grande manancial, como ainda o são hoje. Lembro haver distribuído entre os alunos (muito numerosos) os livros que tinha em casa (e que nunca mais voltaram). Mas fiquei contente pelo interesse despertado.
Quando esteve em Yale, no início de 1990, a senhora teve contato com o crítico Victor Erlich, que foi orientando de Roman Jakobson. Na ocasião, Erlich, como a senhora conta, afirmou que “após o formalismo russo, nada de mais original ou importante tinha surgido no domínio da Teoria da Literatura”. A senhora ainda concorda com isso?
Cada vez mais. O próprio Derrida, no ápice de seu “desconstrucionismo”, assevera: qualquer análise é, essencialmente, estruturalista.
Em linhas gerais, claro, sem desconsiderar as contribuições individuais, qual é o grande legado dos formalistas russos?
Terem proposto estudar as diferenças entre um texto qualquer e um texto artístico e terem chegado objetivamente, pela descoberta e análise de uma série de procedimentos, a definir o que vem a ser a tão mal traduzida “literaturnost”.
A senhora é estudiosa da Semiótica Russa e também cotraduziu obras de importantes teóricos da área, como de Eliazar Meletínski e de Viatchesláv Ivánov. Mesmo que de forma sucinta, poderia apontar as principais diferenças entre a Semiótica Russa e a Ocidental? O que a russa traz de original?
Os estudos de Semiótica Russa foram se ampliando nessas últimas décadas, abarcando a História da Cultura Mundial, a Antropologia Cultural, o Mito, a Linguagem. Contemplam igualmente as propostas da Semiologia (francesa) e da Semiótica (anglo-americana), que em muitos aspectos eles anteciparam e cujos limites expandiram. Entre as diferenças está a aplicação do assim chamado “princípio dinâmico”, que permite ao pesquisador separar os elementos mais arcaicos na descrição sincrônica dos elementos “não oficiais” de certa tradição cultural e, remontando às fontes desta, examinar as vias de sua transformação. Fora isso, a Escola de Tártu e os estudos de Iúri Lótman são um manancial de propostas originais.
Em seu mestrado e doutorado, a senhora fez uma análise comparada do futurismo italiano e do cubofuturismo russo e de representantes como Maiakóvski e Khlébnikov. Na sua visão, a corrente russa guarda marcas da europeia, ou das ideias de Marinetti?
Novamente, alguns representantes do futurismo russo têm expressões comuns ao futurismo italiano, mas — de uma maneira geral — dele se distanciaram e, principalmente graças aos estudos de Jakobson, desenvolveram teorias próprias.
Entre seus ensaios e críticas, aparecem estudos de Púchkin, Tolstói e Dostoiévski até os contemporâneos, mas suas escolhas como tradutora trazem principalmente autores russos “não clássicos”, como Velimir Khlébnikov [com a tradução de “Ka”, publicada em 1976], Iúri Tyniánov [“Tenente Quetange”, que saiu pela Cosac Naify em 2002] e Isaac Bábel [“Exército de cavalaria”, também publicado pela Cosac Naify, em 2005, traduzido a quatro mãos com Homero Freitas de Andrade]. No campo da tradução, a senhora prefere lidar com novas experiências estéticas?
As novas experiências estéticas são apaixonantes, mas eu também começo por procurar no velho as sementes do novo.
Em 2006 o livro “Indícios flutuantes”, antologia de poemas de Marina Tsvetáieva, foi publicado com seu prefácio, seleção e tradução, a qual, por sinal, foi premiada com o Jabuti no ano seguinte. Qual foi o critério de escolha dos poemas?
Estudei durante anos a poesia de Marina Tsvetáieva com Liuba Kusnetsova (testemunha ocular de seu tempo), mas escolhi para publicar apenas os poemas cuja transposição para o português pareceu mais satisfatória.
No prefácio, a senhora diz que Tsvetáieva era uma poeta “quase sempre ‘possessa’”. Poderia falar um pouco do temperamento, digamos, febril de Marina, pensando nos reflexos disso em sua poesia?
Quem escreveu muito sobre esse aspecto de Marina foi o eslavista suíço Georges Nivat, cujos livros recomendo, especialmente o último que prefaciou: “Le cahier rouge” [que saiu em francês, pela Éditions des Syrtes, em 2011], fac-símile de diários da poeta. Os reflexos do temperamento de Marina em seus versos estão na obrigatoriedade da “inspiração”. Os versos brotavam nela como milagres, algo como o sonho, que depois ela retrabalhava num conjunto: o poema.
Os amores de Marina Tsvetáieva, alguns recíprocos, tornaram-se célebres. Entre seus afetos, estavam Óssip Mandelstam, Boris Pasternak, Rainer Maria Rilke, Anna Akhmátova… Essa relação tão intensa de Marina com outros escritores marcou sua poética de alguma maneira?
Sim: ela escreveu versos tão inspirados nesses seres que, como homenagem e/ou como contágio, seu estilo se aproxima aos deles, especialmente nos poemas a eles dedicados.
[Em novembro de 2011], saiu na revista CULT um ensaio seu (“Os dois gênios sob o crivo da história”) comparando os trabalhos de Dostoiévski e Tolstói. Outra comparação normalmente feita é entre Marina Tsvetáieva e Anna Akhmátova, que, a propósito, a senhora também traduziu [a tradução de “Réquiem” a quatro mãos com Hadasa Cytrynowicz foi publicada pela Art Editora, em 1991). É possível definir um breve paralelo entre as poetas?
Pessoalmente, nas traduções que empreendi, achei as duas poetas bastante diferentes. Akhmátova, mesmo quando não escreve em metro (em “Réquiem” usou a sucessão de sílabas longas e breves, e não as rimas, as assonâncias e o ritmo a que estamos acostumados), pareceu-me mais épica do que lírica.
Ao ler suas traduções e seus ensaios sobre tradução literária, percebemos que, como no caso de Boris Schnaiderman ou de Haroldo de Campos, para a senhora traduzir é um processo criativo, de recriação? Qual é o limite da liberdade do tradutor?
O limite da liberdade do tradutor é o seu talento. Sem talento, por mais esforçado que ele seja, mesmo em se tratando de prosa artística, ele destoa.
No livro de Marina Tsvetáieva há uma colaboração do Augusto de Campos, assim como a senhora já trabalhou com o Haroldo de Campos [Aurora traduziu para o italiano uma coletânea de poemas de Haroldo de Campos e com ele traduziu um livro de Giuseppe Ungaretti: “Daquela estrela à outra”, que saiu pela editora Ateliê, em 2003, e recebeu o Prêmio Jabuti de Tradução]. Como foi a experiência de tradução com os irmãos Campos?
Embora ambos criativos, as traduções dos irmãos Campos são um pouco diferentes. Talvez, nas traduções, Haroldo dê mais ênfase ao conceito e Augusto ao som.
A senhora fez importantes traduções do inglês e do italiano, como de George Steiner, Umberto Eco, Luigi Pirandello, Ermanno Stradelli, Dino Campana, etc. Com a experiência de traduzir outras línguas, quais as questões específicas que enxerga no trabalho com o idioma russo?
No que se refere à prosa, as questões cruciais são específicas de cada autor, dentro de dada língua. Já na poesia, a tradução do russo, frente às línguas citadas, é a mais difícil.
É cada vez mais frequente a tradução feita a quatro mãos. O que acha desse processo e como ele acontece no seu caso?
Aconteceu, em traduções em prosa, mas normalmente não em poesia, a não ser que cada tradutor seja autônomo em relação àquilo que traduz. Trata-se, então, de uma coletânea, e não de uma colaboração.
Que conselhos daria a um jovem tradutor?
Só seja tradutor se você tem propensão a ler e a escrever obras literárias: a experiência do processo criativo é fundamental e os modelos dos bons escritores ajudam bastante.
Este texto é uma versão abreviada de entrevista concedida em março de 2012 a Daniela Mountian e gentilmente cedida ao Russia Beyond. O original pode ser encontrado na íntegra no livro “Aulas de Literatura Russa” (ed. Kalinka, 2018).
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