A autora Aurora Bernardini (centro) ao lado de Daniela Mountian e Valteir Vaz, organizadores do livro 'Aulas de Literatura Russa: de Púchkin a Gorenstein'.
DivulgaçãoTenho guardadas, em uma pasta verde, anotações manuscritas e cópias de textos da disciplina ministrada por Aurora Fornoni Bernardini na pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP). São lições de poética e tradução que me inspiraram a traduzir literatura russa e a refletir e escrever sobre esse tema.
Quantas dessas lições não estão presentes hoje em meus textos, aulas, traduções, projetos de pesquisa? E quantas outras pessoas – alunos, colegas, interlocutores de diversos tipos – não carregam também em sua formação conhecimentos transmitidos por essa pensadora instigante e original, em seus diversos momentos de professora, tradutora, escritora, ensaísta, pesquisadora?
Sempre imponente, de presença vigorosa e poética, dona de certo ar akhmatoviano, muitas vezes, inclusive, envolta em xales-echarpes que lembram o eternizado adereço de Anna Akhmatova, Aurora Bernardini faz parte do grupo de mestres que formou e forma gerações de estudiosos da língua, literatura e cultura russas no Brasil.
Em 1994, no volume da revista "Estudos Avançados" dedicado às origens e linhas de pesquisa em Humanidades, foi ela a responsável por fazer a síntese do Curso de Russo da USP: um relato do caminho percorrido desde a abertura de um curso livre em 1960, ministrado por Boris Schnaiderman, até a criação e ampliação da pós-graduação em Literatura e Cultura Russa naqueles meados da década de 90.
Neste dezembro de 2018, o recém-lançado "Aulas de literatura russa – de Púchkin a Gorenstein", organizado por Daniela Mountian e Valteir Vaz, traz de volta a atmosfera dos anos de contato pessoal em sala de aula.
Isso porque no livro de resenhas, artigos e ensaios de Aurora Bernardini, além de obras, autores e teóricos russos dos séculos 19 e 20, encontra-se a sua visão perspicaz e esclarecedora em textos que, como nos diz Arlete Cavaliere no prefácio, são fruto das “intuições mais verdadeiras, surgidas e acumuladas no decorrer de vários anos no exercício ininterrupto da pesquisa acadêmica, da crítica literária e da docência no campo dos estudos russos” (p. 9).
Roteiro de leitura
Como textos independentes, publicados em diferentes períodos, as Aulas de Bernardini podem ser apreciadas separadamente, em ordem aleatória, de acordo com o interesse do leitor.
Entretanto, a ordem proposta pelos organizadores descortina um panorama harmônico, em que se evidencia o que de mais importante se acumulou na recepção da literatura russa no Brasil: a diversidade de temas, a variedade de autores e a renovação de abordagens.
Reunidos em quatro blocos intitulados “Obras e Autores”, “Teóricos”, “Entrevistas" com Aurora Bernardini e “Relatos”, os textos mostram um percurso individual, as tendências brasileiras no estudo da literatura russa e os diálogos da crítica e pesquisa brasileiras com seus pares internacionais.
À porta de entrada, está Aleksandr Púchkin, “o grande iniciador da literatura russa” (p. 21), não no sentido literal, como explica Bernardini ao reconstituir a formação da literatura russa, mas como o poeta que introduziu formas originalmente nacionais e cuja obra-prima, o romance em verso "Evguéni Oniéguin", tem sido lido e investigado exaustivamente por estudiosos e leigos.
Junto com ele, na seção “Romantismo e realismo”, há reflexões sobre Nikolai Gógol, Ivan Gontcharóv e Ivan Turguêniev, além de um artigo final sobre os clássicos russos como ícones da prosa mundial.
O que não pode faltar, obviamente não falta: comparecem às Aulas tanto Fiódor Dostoiévski quanto Lev Tolstoi, não só por serem os nomes mais conhecidos entre nós e contarem com enorme fortuna crítica no mundo todo, mas também por sua influência sobre a intelectualidade brasileira.
A cada um deles é dedicada uma seção especial, em que a autora revisita os temas mais recorrentes e, ao mesmo tempo, escapa do óbvio.
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Anton Tchékhov integra o “Novo realismo” ao lado de um nome menos conhecido hoje, mas que, na segunda metade do 19 disputava espaço com ele – Vladímir Korolenko.
Ambos renunciaram ao título de membro da Academia de Ciências da Rússia quando a instituição repudiou a indicação de Maksim Górki (Aleksei Pechkov), escritor tratado em seguida por Aurora Bernardini.
Para fechar a seção, uma resenha de 2014 sobre o lançamento de contos de Ivan Búnin.
De Búnin, que “abominava Maiakóvski” (p. 194), passamos às vanguardas da virada do século 19 para o 20, momento de revalorização da poesia e de surgimento de correntes e grupos inovadores.
Desbravado por Bernardini em vários trabalhos anteriores (por exemplo, no doutorado “Poesia e poéticas do futurismo: russo e italiano”, defendido em 1973), esse tema apresenta em primeiro lugar Velímir Khlébnikov (Víktor Khlébnikov) na tradução do conto "Ka", em que, em primeiro plano, está “a Língua, como fonte de conhecimento” (p. 201), e na relação com Manoel de Barros, num “encontro de andarilhos” (p. 203).
Logo depois, Vladímir Maiákovski e Marina Tsvetáieva, relacionados tanto em sua poética e biografia, quanto nas descobertas da pesquisadora, que nos conta como “entretida com o estudo de Maiákovski, preocupada em captar a ‘verdade’ de sua poesia” (p. 227), acabou por encontrar a chave de leitura no “brilhante e certeiro poema que Tsvetáieva dedicou ao poeta” (p. 227).
Os três nomes seguintes – Leonid Dobýtchin, Víktor Chklóvski e Daniil Kharms, em textos de 2009, 2018 e 2013 – originam-se da rica parceria entre Aurora Bernardini e Daniela e Moissei Moutian na Editora Kalinka, um luxo editorial brasileiro que tem ampliado o catálogo de obras e autores russos em nossas bibliotecas, com lançamentos magnificamente ousados e consistente proposta tradutória, capaz de elaborar no Dobýtchin em português, por exemplo, “a linguagem sintética, quase sincopada, inovadora (a língua russa presta-se a isso, e a tradução atenta não o perdeu de vista)” (p. 244).
Autores e obras em “Contemporâneos (século 20)” iniciam-se pelas lições do polêmico Vladímir Nabókov, seguidas de uma bela descrição do mundo biográfico e literário de Ióssif Bródski.
De Serguéi Dovlátov vamos conhecer as novelas "Parque cultural" e "O ofício" e as relações duplas do autor, com a Rússia e os EUA, com a literatura e o jornalismo.
Hábil em revelar novos nomes ao leitor brasileiro, Bernardini termina essa seção com Friedrich Gorenstein, “autor judeu russo praticamente desconhecido no Brasil (apesar de ter sido roteirista, entre outros, de "Soláris" e "Andrei Rubliov", de Tarkóvski)” (p. 299) e o romance "Salmo", em que se narra “a vinda do Anticristo, em 1933, a uma pequena aldeia da Ucrânia e suas peripécias pela Rússia stalinista até 1973, ano em que desaparece” (p. 299).
Se a respeito de Nabókov, Bernardini nos diz que, nas aulas sobre escritores ocidentais, ele “ia direto para o estudo das obras de seus favoritos, explicando-as com diagramas e com citações nevrálgicas” (p. 275), enquanto sobre “escritores russos, dirigindo-se a um público que desconhecia sua cultura, apresentava um resumo biográfico e uma visão geral do ambiente do autor, antes de passar à análise mais aprofundada das obras escolhidas” (p. 276), a respeito de Bernardini, podemos dizer que ela reúne esses elementos – vida, obra e contexto histórico – num amálgama intrincado, capaz de nos levar de um a outro sem a noção de mudança ou ruptura.
É assim que se esclarecem, ao longo das Aulas, conceitos e noções essenciais para a compreensão do mundo sociocultural russo, como "iurodyi", alma russa, "intelligentsia", o tédio russo...
O exemplo do primeiro deixa clara a técnica: “Pela fuga ao contingente e por uma curiosa tendência que o homem russo tem de admitir a participação da loucura e da desordem na instituição da ordem, explica-se a figura do 'iuródivyi' – pleno de loucura mansa, interpretada como uma força, um dom, uma forma de ascetismo própria do pietismo russo –, na qual Dostoiévski se inspirou para criar a personagem de seu livro mais querido, 'O idiota'” (p. 63).
O segundo bloco de artigos do livro de Bernardini trata da crítica russa em sua relação dinâmica com a literatura de ficção.
O primeiro artigo resenha a "Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901)", o segundo promove uma revisão e atualização do Formalismo russo, que se desdobra no terceiro, intitulado “Aurora Bernardini entrevista Victor Erlich: sobre as reverberações do formalismo russo na crítica literária americana”.
A partir da página 335, fazemos uma pausa contemplativa para olhar com atenção o perfil da autora revelado em suas entrevistas e relatos.
Descobrimos aspectos singulares da tradução do russo para o português, como o uso da travessão, que é “mostra a existência do verbo ‘ser’ no presente, embora omitido, que “é pausa, mas também é signo de algo que não foi dito”, “é um aglutinador, um modo de sintetizar” (p. 348); as décadas de colaboração com Boris Schnaiderman, citado em várias passagens e homenageado com uma “Saudação”; as lembranças da última viagem sentimental à URSS. Irrepreensível final para um volume que registra não só a produção acadêmica de uma vida inteira, mas também a trajetória pessoal em meio à paixão pela literatura, cultura e língua russas.
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