"Pôdvig', o 'nadrív' de Dostoiévski e os 'iurôdivi". É possível sequer imaginar o que é isso?
Grigóri AvoianA língua portuguesa tem centenas de milhares de palavras. Ainda assim, não basta para desatar alguns nós do léxico russo. Determinados vocábulos dessa língua são difíceis de explicar até por nativos, e tentar assimilá-los já é o primeiro passo para ganhar uma “alma russa” na próxima encarnação!
1. Pôshlost (пошлость)
O escritor russo-americano Vladímir Nabôkov, que ministrava conferências sobre Estudos Eslavos em universidades dos EUA admitia não conseguir traduzir essa palavra, que é facilmente compreendida por qualquer estudante russo.
O que é, então, “pôshlost”? Nabôkov dava os seguintes exemplos para tentar explicar esse enigma: “Abra uma revista e você certamente encontrará algo assim: uma família acaba de comprar um rádio (ou um carro, uma geladeira, prataria ou qualquer outra coisa). A mãe está batendo palmas, doida de alegria. As crianças se reúnem, boquiabertas, ao redor dela. O bebê e o cachorro estão apoiados na mesa onde o objeto de idolatria foi colocado. Um pouco de lado está em pé, vitorioso, o pai, o orgulhoso provedor da família. A “pôshlost’icidade” intensa dessa cena não vem do falso exagero da dignidade de determinado objeto útil, mas da suposição de que tal alegria possa ser comprada e de que tal compra enobrece o comprador.”
Enquanto o dicionário Português-Russo-Português “Nôvi slovar” de Dmítriev e Stepenko define “pôshlost” como vileza, torpeza, ou, ainda, vulgaridade, a palavra, segundo a professora Svetlana Boym, da Universidade de Harvard, “conjuga noções como trivialidade, vulgaridade, promiscuidade sexual e insensibilidade”.
2. Nadrív (надрыв)
A versão alemã da Wikipedia dedica um artigo inteiro à palavra “nadrív”. Isso porque o vocábulo é conceito-chave na escrita de Fiódor Dostoiévski, cujas versões para o alemão ganharam tanta relevância, que sua principal tradutora, Svetlana Geier, virou tema de um documentário premiado. “Nadrív” descreve uma explosão emocional incontrolável em que se despejam sentimentos íntimos e profundamente secretos.
Além disso, o “nadrív” de Dostoiévski implica uma situação em que o protagonista abandona-se no pensamento de que pode encontrar na alma algo que talvez sequer exista. É por isso que o “nadrív” frequentemente expressa sentimentos imaginários, excessivamente exagerados. Uma parte do romance “Irmãos Karamázov” é intitulada “Nadrív”.
3. Khâmstvo (хамство)
O escritor soviético exilado Serguêi Dovlátov escreveu sobre esse fenômeno em seu artigo “Esse intraduzível “khâmstvo”. Ali, ele comenta que o “khâmstvo” (pronuncia-se “hâmstva”) “não é nada além de grosseria, arrogância e insolência multiplicados pela impunidade”.
Para Dovlátov, é com a impunidade que o “khâmstvo” nos mata instantaneamente. É impossível combatê-lo, você só se submete a ele. “Eu vivi nessa louca, maravilhosa e horripilante Nova York por dez anos e estou pasmo pela ausência de ‘khâmstvo’. Tudo pode acontecer com você aqui, mas não tem ‘khâmstvo’. Você pode ser roubado, mas ninguém vai fechar a porta na sua cara”, escreveu o escritor.
4. Stushevátsia (стушеваться)
Alguns linguistas acreditam que o verbo “stushevátsia” tenha sido criado por Fiódor Dostoiévski, que o utilizou pela primeira vez em sentido figurado em seu romance “O duplo”. Traduzido para o português, ele seria o “ato ou efeito de se tornar menos notável, ir para a obscuridade, perder papel de importância, deixar visivelmente a cena, ficar confuso em uma situação estranha ou inesperada, tornar-se submisso”.
5. Toská (тоска)
Por mais que “toská” seja, por vezes, traduzida para o português como “saudade”, sua definição e compreensão é muito mais profunda, abrangendo a ideia de “dor emocional” ou “melancolia”. Vladímir Nabôkov escreveu que “nenhuma palavra em inglês pode transmitir todas as nuances da ‘toská’. Esse é um sentimento de sofrimento espiritual sem qualquer razão particular. Em um patamar menos doloroso, é a dor indistinta da alma... uma vaga ansiedade, nostalgia, saudade amorosa”.
6. Bitiê (бытие)
A palavra tem o mesmo radical do verbo “bit” (быть), “existir”. Nos dicionários Russo-Português, é traduzida apenas como “existência” ou “ser”. Na realidade, porém, ela não se resume à vida ou à existência em si, já que significa a existência em uma realidade objetiva que é independente da consciência humana (e do cosmo, da natureza, da matéria). Sua compreensão é tão filosófica, na verdade, que reúne estudos da semântica utilizando o Ouroboros (a serpente que morde a própria cauda) para simbolizá-la, além de lógica matemática, da teoria dos protótipos e outros experimentos da psicologia cognitiva.
7. Bespredél (беспредел)
O professor de Estudos Eslavos da Universidade de Nova York Eliot Borenstein explica que “bespredél” significa, literalmente, “sem restrições ou limites”. Os tradutores frequentemente vertem o vocábulo para “ilegalidade” ou “ausência de leis” (“bezzakonie” – “беззаконие). Esse conceito em russo é, porém, muito mais amplo, e se refere ao comportamento de uma pessoa que viola não apenas as leis, mas também as normas morais e sociais. Sua tradução, em dicionários de Russo-Português, chega a aparecer como “caos”.
8. Avôs' (авось)
Não, isso não tem nada a ver com os pais dos seus pais, e é bem mais difícil de se explicar a pessoas de outras nacionalidades. É interessante notar, ainda, que muita gente acredita que o “avôs’” seja o principal traço característico russo. Assim, “esperar pelo ‘avos’” significa “fazer algo sem planejar e sem colocar muitos esforços, mas contando com o êxito”.
9. Iurôdivi (юродивый)
Na antiga Rus’, os “iurôdivie” (юродивые) eram pessoas que renunciavam voluntariamente aos prazeres em nome de Cristo. Essas pessoas pareciam loucas e levavam um estilo de vida de retiro com o objetivo de obter a paz interior e derrotar a raiz de todos os pecados, ou seja, o orgulho. Eles eram estimados e considerados próximos de Deus. Suas opiniões e profecias eram levadas a sério e chegavam até a ser temidas. Hoje, a palavra também tem o sentido figurado de “tolo” ou “anormal”.
10. Pôdvig (подвиг)
Em português, esse vocábulo é frequentemente vertido como “façanha”, “proeza” ou “feito”, mas ele tem outros sentidos também, muito diferentes. “Pôdvig” não é apenas o resultado ou realização de um objetivo, mas também um ato corajoso e heroico, uma ação realizada em circunstâncias difíceis. A literatura russa cita frequentemente algum “pôdvig” militar ou civil. Além disso, a palavra pode significar atos abnegados, como um “pôdvig” em nome do amor.
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