No curso de letras russas da USP, Boris formou excelentes tradutores e pesquisadores
Arquivo pessoalEm maio de 2017, completaria cem anos um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros: o tradutor, pesquisador, professor e fundador do curso de letras russas da USP Boris Schnaiderman. Em maio de 2016, a apenas um ano do centenário, Boris morreu.
O fato de que o Brasil tem vivido um verdadeiro boom de literatura russa nas últimas décadas em muito se deve à personalidade emblemática de Boris Schnaiderman.
Às vezes, pergunto-me quantos leitores brasileiros não teriam deixado de se apaixonar pelos escritores russos se não tivessem sido cativados pelas traduções cunhadas por Boris de obras de Púchkin, Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov ou Górki.
Para ele, a tradução era uma arte e cocriação. Ou, como ele mesmo dizia, “traduzir é, realmente, um ato desmedido. Sem ousadia, arrojo, voos de imaginação não existe um bom tradutor”.
Por sua arte na área, ele foi agraciado com Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras.
Coetâneo da Revolução
Boris nasceu em 17 de maio de 1917, em Úman, no sul da Rússia imperial. Mas, já em 1925, sua família deixou a União Soviética rumo ao Rio de Janeiro. Lá ele iria se tornar brasileiro, mas nunca perderia a forte ligação com a Rússia.
Ainda garoto, não apenas leu os clássicos russos completos que os pais tinham na biblioteca, mas também copiou dezenas de livros para reforçar a aprendizagem do idioma. E, sendo sempre e em tudo um perfeccionista convicto, obteve um domínio absolutamente impecável do russo.
Viveu uma vida longa e intensa. Ainda criança, em Odessa, presenciou as filmagens da antológica cena de “Encouraçado Potiômkin”, de Eisenstein, rodadas na escadaria Richelieu.
Participou da Segunda Guerra Mundial e lutou no pior dos combates da Itália, na Batalha de Monte Castelo. Sobre sua experiência da guerra, viria a publicar dois livros, a ficção “Guerra em surdina”, de 1964, e as memórias intituladas “Caderno italiano”, de 2015.
Foi perseguido pela ditadura por ensinar o “idioma dos comunistas”: logo depois do golpe militar de 1964, foi detido em sala de aula e levado ao Dops.
Viajou diversas vezes para a União Soviética e para a Rússia pós-soviética, onde fez amizades com figuras como Viatcheslav Ivânov, Mikhail Bakhtin, Eliazar Meletínski, Serguei Nekliúdov, Naum Kleiman, Nikolai Bogomólov – o “crème de la crème” dos intelectuais russos.
Durante muitos anos, de 1956 e quase até o final da vida, Boris escreveu e publicou mais de 350 artigos de temática russa na imprensa. Sem abrir mão da visão crítica sobre os diversos processos que ocorriam na URSS e na Rússia pós-soviética, conseguiu transmitir, ou melhor, “contaminar” milhares de leitores com seu amor ao país de origem.
Suas reflexões sobre o fim da época soviética foram publicadas no livro “Os escombros e o mito: a cultura e o fim da União Soviética”.
Um ímã entre Brasil e Rússia
É difícil avaliar o quanto Boris Schnaiderman fez para aproximar o Brasil do universo literário e cultural russo.
No curso das letras russas da USP, que viria a se tornar uma das mais conceituadas escolas latino-americanas no ensino de língua, literatura e cultura russa, Boris formou excelentes tradutores e pesquisadores.
Extremamente modesto, ele impressionava por suas análises literárias, profundas e atentas aos pequenas detalhes. Sua meticulosidade na preparação desse material o levou, em 1983, a levar um Prêmio Jabuti pelo ensaio “Dostoiévski. Prosa Poesia”.
Admiravam sua erudição (era difícil encontrar uma obra da literatura russa que ele não tivesse lido) e a memória fenomenal que ele mantinha até pouco antes da morte – eu mesma o vi algumas semanas antes do fatídico acontecimento.
Boris guardava centenas de poemas russos. Diversos desses, traduzidos pelo professor em parceria com os irmãos Campos, entraram na já clássica coletânea “Poesia russa moderna”.
Todos os que conheceram Boris sentiam em sua presença uma especial irradiação de seu talento. Um talento por demais humano, ancorado em bondade e generosidade.
Dele, nunca ouvi qualquer julgamento crítico sobre outros colegas ou pessoas. Muito pelo contrário, o professor Boris estava sempre pronto a elogiar uma tradução ou um ensaio, elaborado por mestres ou iniciantes, e tentava ajudar todos que se debruçassem sobre traduções e os estudos da literatura russa.
Agora, a nova geração de russistas – seus “filhos” e “netos” – continuam a desenvolver o trabalho iniciado por Boris, o grande.
Elena Vássina é russa e vive em São Paulo, onde é professora de Literatura e Cultura Russa na USP.
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