Os romances de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), incluindo “O Idiota”, “Os Demônios” e “Os Irmãos Karamázov”, consolidaram seu status como gigante da literatura russa do século 19. Atemporais, suas obras influenciaram a escrita de romancistas e intelectuais proeminentes, de Virginia Woolf a Orhan Pamuk.
Mas Dostoiévski também tinha suas preferências quanto à literatura mundial. A família de Dostoiévski tinha por tradição a leitura oral de livros. Assim como o pai, Fiódor Dostoiévski lia os clássicos russos e europeus em voz alta para seus filhos. Assim, ele os apresentou à Bíblia por meio de um livro que ele mesmo tinha devorado ainda criança: "124 histórias do Antigo e do Novo Testamento".
Dostoiévski sempre mencionava seus autores favoritos em cartas e notas. Por meio delas, temos ciência de que ele admirava o romance “Oblómov”, de Ivan Gontcharov, e recomendava fortemente a leitura de “Guerra e Paz”, de Lev Tolstói. Ele elogiou ainda Aleksandr Púchkin e Nikolai Gógol, além de ser fascinado pelos escritos de Charles Dickens, Victor Hugo, Honoré de Balzac, Walter Scott, William Shakespeare, Lord Byron e Diderot.
Os cinco livros seguintes, no entanto, estavam no topo da lista entre os favoritos de Dostoiévski:
1.“A dama de espadas”, de Aleksandr Púchkin
O poeta favorito de Dostoiévski desde a infância foi a principal estrela da poesia russa e fundador da língua russa moderna, Aleksandr Púchkin (1799-1837), incomparável por sua versatilidade estilística e profundidade que conferiu ao sentimento humano. Dostoiévski sabia de cor muitos de seus poemas. Dostoiévski (autor de um livro chamado “O jogador" e ele mesmo um jogador compulsivo por 10 anos) apreciava especialmente o conto místico de Púchkin “A dama de espadas”. Publicado em 1834, ele é uma parábola sobre a ganância e suas consequências fatais.
A história gira em torno de Hermann (em russo, “Guérmann”, que remete também a Alemanha/Germânia), um jovem engenheiro militar de ascendência alemã que descobre que a avó de um colega oficial (a idosa condessa Anna Fedotovna Tomskaia) tem o segredo das vitórias em jogos de cartas.
Levado por um desejo quase maníaco de arrancar dela o segredo, Hermann começa a ter um caso com a jovem pupila da condessa, Lizaveta. Mas as coisas saem dos trilhos quando Anna Fedotovna se recusa a compartilhar seu segredo mais precioso com Hermann.
2. “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes
Dostoiévski recorria frequentemente a "Dom Quixote", considerado o primeiro romance moderno. Ele adorava a epopeia em dois tomos e a releu várias vezes. Esse livro era para ele uma fonte constante de inspiração.
Publicada pela primeira vez no início do século 17, a grande obra espanhola retrata as aventuras de uma dupla de cavaleiros, Dom Quixote de la Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança, com uma disposição bastante positiva.
“Pois nem o bem, nem o mal podem durar para sempre; e assim é que, como o mal durou muito tempo, o bem agora deve estar próximo”, escreveu Miguel de Cervantes (1547-1616). Ao contrário de Dostoiévski, ele era um grande otimista.
3. “O pirata”, de George Sand
Dostoiévski preferia histórias com reviravoltas engenhosas e personagens estranhos. No caso de George Sand (1804-1876), o russo ficou "impressionado com a casta e a mais alta pureza de tipos e ideais e com o modesto charme do tom estrito e contido da história".
George Sand (pseudônimo de Amantine Lucile Aurore Dupin, que adotou o nome masculino para assinar suas obras porque no século 19 as mulheres escritoras não tinham a mesma recepção que os homens) era fiel ao romantismo e ao realismo e admirava os poemas dramáticos de Lord Byron.
A principal inspiração por trás de “O Pirata” (cujo título original, “L'Uscoque” remete a um apelido em italiano de uma personagem) são os poemas trágicos Byron “O Corsário” e “Lara”. Como escrevem as pesquisadoras da PUC de São Paulo Cabrini, Fernandes e Guimarães, no Brasil, Sand obteve grande êxito editorial em determinados períodos, mas depois foi praticamente esquecida pelo público. Assim, seu “O pirata” data, na edição nacional, de 1841 (apenas três anos após o original, de 1838), publicado pela Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Comp., do Rio de Janeiro — aparentemente, esta é a única edição da obra feita em terras tupiniquins, e o valor deste achado em sebos, quando disponível, supera os 500 reais na atualidade, conforme constatamos em abril de 2021.
“O pirata” se passa na virada do século 17. Um jovem veneziano, Orio Soranzo, casa-se com a filha do almirante Morosini, Giovanna. Ele recebe uma grande fortuna e uma patente militar como recompensa. Sua missão é combater os piratas do mar e proteger os navios mercantes venezianos. Mas, ao perder a herança da mulher, Orio fica do lado dos piratas. Enquanto Giovanna está presa no castelo, seu marido desfruta da companhia de uma concubina chamada Naem.
Em “O pirata”, o eterno confronto entre o bem e o mal terminará em fatalidades.
4. "Os Miseráveis", de Victor Hugo
Publicado originalmente em 1862, este enorme romance histórico obteve sucesso instantâneo. Ele retratava o heroísmo e o sacrifício, a trapaça e o amor, a desgraça e a misericórdia com uma escrita tão brilhante que os leitores devoravam suas mais de 1.000 páginas com voracidade.
Dostoiévski escreveu em uma de suas cartas que, "ao contrário da opinião de todos os nossos especialistas, 'Os Miseráveis' deveria ser colocado acima de 'Crime e Castigo'".
A história se concentra no ex-presidiário Jean Valjean, que vai para a prisão por roubar um pão. Quando sua pena de 19 anos finalmente termina, a vida fica cada vez pior. Suas roupas miseráveis e o rosto castigado pelo tempo são repulsivos. Valjean é tratado como lixo, e todas as portas se fecham para ele. Só uma pessoa, o Bispo Myriel (também conhecido como Monseigneur Bienvenu) lhe estende a mão. Com intriga, suspense e reviravoltas na trama a cada página, "Os Miseráveis" é um romance de grande poder humano e esplendor literário.
Dostoiévski tinha apreço ainda por outras obras de Victor Hugo, como "O Último Dia de um Condenado", a qual descrevia como um experimento pioneiro de "realismo à beira do surrealismo" e traduziu para o russo. Curiosamente, Dostoiévski comparava o escritor francês a Homero, o autor de "Ilíada" e “Odisseia", afirmando estarem os dois unidos por "uma crença infantil no Deus da poesia".
5. “Cândido”, de Voltaire
Voltaire (1694-1778) nasceu à época do Iluminismo e acabou se tornando um de seus principais símbolos. Suas obras, de escrita leve, aguçada e espirituosa, eram dirigidas contra a Igreja e o fanatismo religioso, o poder absoluto dos reis e o despotismo. Assim, quem tinha uma visão cética, sarcástica ou liberal como Voltaire passou a ser chamado de “voltairiano”.
Nesta obra, Cândido é um jovem que acredita cegamente que tudo acontece apenas “para o melhor”. Mas ele é expulso do castelo “de marfim" onde nasceu e cresceu, e é forçado a correr o mundo, passando a ver as coisas de uma perspectiva diferente.
Repleto de ironia e paradoxo, este romance curto de Voltaire é uma obra-prima de sabedoria e profundidade imbatíveis. Em “Cândido”, o prolífico autor francês (cujo nome verdadeiro era François-Marie Arouet) discorre ironicamente sobre normas e convenções sociais, cultura e religião, medos e pressões, chegando à conclusão de que, embora a vida seja muito difícil, há, sim, uma luz no fim do túnel.
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