"Eugene Onegin" illustration (1908).
Elena Samokich-SoudkovskaïaFinalmente! Provavelmente a tradução mais esperada entre as obras de literatura russa que o Brasil ainda não conhece. O romance “Eugênio Onêguin”, de Aleksandr Púchkin, uma das principais obras da literatura ocidental do século 19, é certamente uma das produções culturais mais complexas a ser julgada. Moderníssima, essa obra foi definida pelo respeitado crítico Vissarión Bielínski como “uma enciclopédia da vida russa”.
Sua característica principal é que este “romance” se apresenta escrito em versos e em rimas. Daí a grande dificuldade de uma tradução que não alvoroce a esplêndida e perfeita língua russa do gênio puchkiniano. Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina são os corajosos soldados nessa batalha, que, é bom já dizê-lo, é uma empresa vitoriosa.
Iniciada anos atrás, sob a supervisão do inesquecível Bóris Schnaiderman, e sob o elogio dele (“poucos lograram semelhante flexibilidade do verso octossílabo em português”), a tradução é primorosa, oscilando entre o arcaico e o moderno, com sábio discernimento das duas “modalidades” presentes na obra puchkiniana.
Com efeito, Púchkin afirma em uma carta a Bestuzhev que “o romance precisa de conversa” (“Роман требует болтовни”). E aqui o paradoxo consiste no fato de que o romance se apresenta como narração escrita sob forma de poesia, de versos.
Púchkin adapta as categorias do discurso da oralidade, não literário, até metaimitativo dos processos da narratividade, alcançando um resultado único: englobar todo aspecto real, vivo, prosaico e lírico da realidade, através de uma especial “entonação” lúdica, irônica e extraordinariamente moderna.
Os críticos detratores contemporâneos de Púchkin o acusaram de falta de unidade do conteúdo, de incoerência da integridade do material e de não desenvolvimento do enredo. Não estavam sem razão. O enredo é quase inexistente, mas é justamente nessa revolução do romance que “Onêguin” se torna uma obra bastante difícil, segundo as palavras de Iúri Lótman, e quase incompreensível para quem esperava um romance sentimental tradicional, no estilo de Karamzin ou da “Filha do capitão”.
Publicado entre 1825 e 1832, em quatro livros, “Eugênio Onêguin” é um romance com pouco respeito pela forma narrativa do romance.
A trama é contada por um narrador que oscila entre uma narração intimista e seu conhecimento mundano. Suas amplas divagações sobre o mundo – não apenas de São Petersburgo – relativizam a história de amor entre o aristocrático e entediado protagonista e a jovem e sensível Tatiana Lárina.
Esse tom plural, multifacetado e dominado por uma constante ironia sobre a realidade, perpassa a obra inteira de maneira extraordinária. Com efeito, a ironia não encobre os profundos temas existenciais que dominam o livro, ao ponto que o romance em versos puchkiniano tem sido lido também como uma obra filosófica, em primeiro lugar, por Semion Frank.
Amiúde, “Eugênio Onêguin” tem sido comparado à obra-mestra de Lawrence Sterne, “Tristram Shandy”. Sabemos hoje, pela imensa bibliografia sobre o grande autor russo, que Púchkin lia os romances ingleses do século 18 e que admirava a revolução narrativa operada por Sterne em relação à ficção.
Não cabe dúvida que a grande atualidade de “Eugênio Onêguin” consiste justamente nesse jogo quase pós-moderno entre realidade e ficção. Qual é o espaço da vida real num romance? E numa lírica? A mímesis vale mais que as notas de rodapé de uma página escrita? Quem é o herói? Existe, de verdade, uma heroína?
No fundo, a aparente vulnerabilidade de Tatiana, tão adorada por Marina Tsvetáieva, é uma inversão dos papéis da épica do romance, e portanto uma reivindicação da força da vida contra a fuga e a ficcionalidade da escrita.
Púchkin está mais interessado em mostrar sua leitura onívora e eclética, revelando seu conhecimento desmedido em termo de influências estrangeiras, tanto material como culturais na São Petersburgo da época.
“Onêguin” pode ser lido também como uma paródia “russa” das obras de Samuel Richardson (Tobias Smollett e Henry Fielding tinham se prodigado para tanto na Inglaterra do século 18 com, respetivamente, “Roderick Random” e “Tom Jones” e “Shamela”).
Além disso, longe das angústias do herói romântico inglês, Púchkin satiriza ironicamente os caprichos românticos do “Childe Harold’s Pilgrimage” de Lord Byron, celebrando, pelo contrário, a jovialidade e a sensualidade como caraterísticas necessárias para cantar um amor são e humanamente completo.
Em “Onêguin” o século das luzes e o romantismo se combinam numa apaixonada defesa da libertinagem como parte indispensável e não sombria da alma humana. Não se trata de uma libertinagem descarada ou vulgar. Ao contrário, a libertinagem é uma forma de liberdade não censurada, uma liberdade in progress, poderíamos dizer, uma liberdade tão humana e, ao mesmo tempo frágil e incompleta, que anseia à liberdade autêntica do espírito. Liberdade do poder político, dos modismos, do próprio eu sufocador: Púchkin tinha dedicado uma ode muito importante ao tema da liberdade.
“Onêguin” é um coroamento desse trabalho ambicioso no virtuosismo do verso poético que se faz romance. Os versos respeitam uma precisa estrutura, bastante inusitada pela época, ao ponto que o esquema de rima “AbAbCCddEffEgg” foi rebatizado como “soneto puchkiniano” ou também “estrofe Onêguin”.
A tradução que aqui lançada agora por Vássina e Correia segue perfeitamente essa regra, com sabedoria, sem parecer nunca artificial ou redundante. O ritmo que os tradutores propõem parece naturalmente “brasileiro”. O trabalho está desenvolvido com tamanho cuidado e beleza poética que, se por um lado o leitor poderá admirar o virtuosismo puchkiniano, por outro reconhecerá a capacidade tradutória e o amor às letras russa dos responsáveis por verter ao português esta magnífica edição.
Lançamento: Aleksandr Púchkin, Eugênio Onêguin. Um romance em versos. Tradução: Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina. São Paulo: Ateliê Editorial, 2019.
Biagio D’Angelo é um escritor italiano, professor da Universidade de Brasília e vencedor do Prêmio Jabuti.
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