6 gênios da literatura russa que queimaram os próprios livros

Russia Beyond (Foto: Orest Kiprenski; Fiodor Moller; Sputnik; Arquivo)
“Manuscritos não queimam”, disse certa vez o escritor Mikhaíl Bulgákov — que destruiu algumas de suas obras no fogo. E ele não estava sozinho nessa “loucura”...

O autor de “O Mestre e Margarida”, Mikhaíl Bulgákov, sabia bem do que falava quando proferiu a retumbante frase: “Manuscritos não queimam!” Isso porque ele escolheu destruir algumas de suas obras para colocar à prova sua crença de que as criações literárias estão profundamente enraizadas na alma do escritor, e não só no papel.

Ele não estava sozinho em sua busca pela verdade. Compilamos uma lista dos gênios da literatura russa que, embora tenham vivido em épocas diferentes, também não tiveram piedade das próprias obras:

  1. Nikolai Gógol

Ao longo de toda a sua vida, o autor de “Diário de um louco” sofreu com alterações de humor. Quando Gógol instituiu seu  marca com obras como “O nariz” e “O capote”, ele dançava em êxtase no meio da rua. Mas a alegria era rapidamente substituída por frustração e ansiedade.

A grande obra-prima de Gógol, “Almas mortas”, foi inicialmente concebida como uma trilogia. O desafio literário era traçar uma imagem multifacetada da sociedade à qual “toda a Rússia respondesse”. O problema é que o perfeccionista em Gógol não conseguiu viver de acordo com o alto padrão que estabeleceu para si mesmo.

A primeira parte de “Almas mortas” saiu em 1842 e recebeu críticas variadas. Quando o articulista Konstantín Aksákov comparou Gógol a Homero e Shakespeare, o aclamado crítico literário Vissariôn Belínski respondeu: “Gógol lembra Homero... tanto quanto o céu cinza e os pinheiros de São Petersburgo lembram o céu claro e os bosques de louro da Grécia”.

Depois que críticos literários acusaram Gógol de distorcer a realidade, seu romance satírico “Almas Mortas” também começou a lhe parecer insignificante. Duro na autocrítica, Gógol disse que a primeira parte de “Almas Mortas” era como “uma varanda de entrada anexada às pressas por um arquiteto da província a um palácio que foi concebido para ser construído em uma escala muito grande”. Mas, estabelecendo objetivos tão altos, Gógol se colocou em uma armadilha.

A segunda parte de “Almas Mortas” era aguardada com ansiedade. Além disso, Gógol a mencionava tanto que se espalhou entre seus amigos o boato de que o livro teria sido concluído.

Na verdade, Gógol estava se debatendo para escrever a segunda parte. O empreendimento provocou uma grave crise criativa. “Eu me torturava e me forcei a escrever, sofri e fui dominado por uma sensação de impotência... e ainda assim não consegui nada: deu tudo errado”, disse Gógol.

Em 1845, em uma crise emocional, ele queimou a segunda parte de “Almas Mortas” (que tinha levado cinco anos para escrever!). Mas o escritor não parou por aí e depois repetiu o feito: em 1852, Gógol queimou outra parte quase concluída de “Almas Mortas”.

Dez dias depois, em depressão, o escritor morreu, aparentemente, de fome, sob o pretexto de um jejum. Vladímir Nabôkov parecia estar certo ao descrever Gógol como “o poeta e prosaísta mais estranho que a Rússia já teve”.

  1. Aleksandr Púchkin

Quanto maior o talento, mais profunda é a dúvida, ou assim parece. A principal estrela da poesia russa, Aleksandr Púchkin, não era um homem destituído de dúvidas. Seus rascunhos eram frequentemente rasgados. Antigamente, quando não existiam trituradores de papel, Púchkin optava por combater a dúvida com fogo. O autor de “A Rainha de Espadas” queimou a segunda parte de seu famoso romance inacabado “Dubrovski”, os rascunhos de seu romance histórico “A Filha do Capitão” e seu poema “Os Ladrões”.

“Eu queimei ‘Os ladrões’, e eles mereceram!”, escreveu Púchkin em uma carta ao poeta e crítico Aleksandr Bestujev, em 1823.

O poeta deixou o décimo capítulo de “Eugênio Onéguin”, seu famoso romance em versos, na forma de quadras criptografadas. Púchkin planejava retomar ao manuscrito algum tempo depois, mas isso nunca aconteceu. Acredita-se que Púchkin tenha destruído o décimo capítulo por medo de perseguição política, já que provavelmente lidasse com a revolta dos dezembristas russos.

  1. Mikhaíl Bulgákov

“O fogão já se tornou meu conselho editorial favorito”, escreveu Bulgákov em carta a um velho amigo, com um triste toque de ironia. “Gosto dele porque ela, sem nada rejeitar, com igual disposição absorve recibos da tinturaria, cartas inacabadas e até, que vergonha, poesia!”

Ele escreveu ainda: “Manuscritos não queimam!” Sua ideia, resumida nessa frase, era que o registro escrito da obra do escritor está, antes de mais nada, inscrito na memória, e não no papel.

Bulgákov foi implacável consigo mesmo e queimou a primeira versão de “O Mestre e Margarida”. O romance tinha outro título na época. Bulgákov queria chamá-lo de “O Mago Negro” ou “Um Malabarista com Casco”, com o personagem Woland como protagonista principal. Pesquisadores acreditam que o escritor não tenha planejado inicialmente queimar o romance, mas o fez no calor do momento, quando a censura soviética proibiu sua peça “A Cabala de Hipócritas”.

“Um demônio me possuiu...”, escreveu Bulgákov mais tarde. “Comecei a queimar uma página após a outra do meu romance... Por quê? Não sei. Deixe-o cair no esquecimento!”

Um ano depois, ele retomou o trabalho: uma versão preliminar do romance surgiu sob o nome de “O Grande Chanceler”.

Bulgákov também transformou em cinzas o primeiro rascunho da segunda e terceira parte de sua obra-prima “A Guarda Branca”. Os diários do escritor também foram impiedosamente “queimados após a leitura”.

  1. Borís Pasternak

O autor de “Doutor Jivago” nunca quis deixar um legado. Com escrupulosidade fanática, Pasternak queimou todos os primeiros rascunhos de suas obras. Se, segundo o poeta, o texto fosse considerado fraco, era destruído com especial zelo e fervor. A destruição aguardava não apenas manuscritos inacabados, mas também obras concluídas.

A peça de Pasternak “Neste Mundo”, que foi recebida com severas críticas, foi imediatamente enviada ao forno. Seu romance “Três Nomes”, que ele levou um ano para escrever, não escapou do mesmo destino. Ele se separou do manuscrito sem se arrepender, já que ele o lembrava de sua primeira mulher, Evguênia.

  1. Anna Akhmátova

Nos tempos soviéticos, muitos poetas e escritores destruíam suas obras por motivos políticos, temendo represálias do governo. Por exemplo, antes de queimar seus versos diretos, Anna Akhmátova (autora do poema “Réquiem”, em que descreve os anos terríveis dos expurgos de Stálin) os memorizou e leu suas últimas composições em voz alta para os amigos, para que eles se lembrassem e os transmitissem boca a boca.

Os poemas de Akhmátova ficaram, portanto, inscritos na memória de seus amigos mais próximos e confiáveis, entre eles, Óssip Mandelstám. A amizade entre os dois durou quase 30 anos. Akhmátova dizia que Mandelshtam era um dos “conversadores mais agradáveis” que ela já conhecera. Óssip, por sua vez, admirava a beleza, o caráter e a verdade de Anna, dizendo que seus versos poéticos “só podem ser removidos cirurgicamente”.

  1. Óssip Mandelstám

Um dos maiores poetas do século 20 foi realista o suficiente para admitir que suas obras podiam custar-lhe a cabeça. O poeta foi forçado a queimar, esconder ou dar cópias dos manuscritos de seus poemas aos familiares. Para manter viva sua poesia, Mandelstám, como Akhmátova, teve que compartilhar a obra com seus melhores amigos.

Em 1933, Mandelstám produziu um epigrama agudo sobre Stálin, "Vivemos sem sentir o chão nos pés” (no Brasil, o texto entrou na coletânea “Poesia russa moderna”, da editora Perspectiva). Pouco depois, o poeta foi preso e enviado ao exílio.

“Tivemos que restaurar os versos, porque depois de todos os choques (batida policial, prisão, exílio, doença), muitos manuscritos simplesmente se apagaram. Aqueles que foram resgatados  acabaram em panelas ou dentro de sapatos”, relembrou a mulher do poeta, Nadejda Mandelstám, em suas comoventes memórias.

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