Um caçador de relíquias tsaristas muito brasileiro

Cultura
MARINA DARMAROS
O advogado paulistano Saul Bonilha, 70, cresceu rodeado de russos em sua casa no Pacaembu, em São Paulo: coronéis do tsar, “velhos crentes”, gente fugida da Revolução. A procedência da vizinhança virou paixão e, além de se dedicar à língua, ele passou a caçar antiguidades do país, construindo um verdadeiro museu em casa.

O advogado paulistano Saul de Moraes Bonilha Filho, 70, cresceu rodeado de russos no Pacaembu, bairro onde vive até a atualidade. “Meu interesse e carinho pela Rússia tsarista vêm desde criança. Aos 11 ou 12 anos, eu morava em uma rua onde a única família brasileira éramos nós, e todos os vizinhos eram russos: alguns que tinham ido para Paris, outros para a China, Harbin, onde tinha uma grande colônia russa, outros para a Grécia. Todos acabaram vindo para o Brasil. Era gente de alto nível intelectual, mas que não se refez na diáspora brasileira financeiramente”, conta.

“Quando eu saía da escola, meus amigos voltavam para suas casas, mas eu voltava para um mundo russo, porque era um entra e sai de gente na minha casa e na casa dos vizinhos, tomando chá, e na Páscoa fazendo ceia, vodca – que naquela época eu, evidentemente, não tomava.”

“Aqui não era fácil achar coisas da Rússia. Os grandes leilões que aconteceram na década de 1930, depois da Primeira Guerra e também depois da Segunda Guerra. Eles foram na Europa e muito pouca coisa chegou ao Brasil. Então eu me lancei um desafio: o que eu achasse de russo, compraria. E, ao longo do tempo, fui adquirindo muita coisa: móveis, sofás, cadeiras, ícones... Meu primeiro ícone eu ganhei aos 14 anos justamente dessa russa minha vizinha que era do grupo de ‘velhos crentes’”, conta.

A senhora não falava português e se comunicava na língua materna com todos – inclusive os pais de Saul, que não tinham ideia alguma do russo, e também na feira, no mercado etc.

“E foi assim que eu comecei a ir à rua Tamandaré, à Igreja Ortodoxa, que tem rituais muito envolventes e maravilhosos. E tinha também em São Paulo, por 1965, perto da represa, a chamada Vila Russa, com histórias muito interessantes, além de duas livrarias russas que eu frequentava, a Livraria Técnico-Científica e a Livraria Rôzov”, conta Saul.

“Eu conhecia todo mundo e acabei travando relações com alguns aristocratas, condes e condessas e que frequentavam a minha casa... Eles, sempre saudosistas, e aquele mundo foi se entranhando em mim: não de forma idealizada, mas à parte da política e dos absurdos que aconteceram antes e depois da Revolução.”

Foi então que Saul resolveu estudar russo. “Eu tinha um vizinho que tinha uma plaquinha na porta de casa: ‘leciona-se russo’. Ele se chamava Borís Ivánovitch Solodovnikov e tinha fugido da pátria porque era coronel do tsar – encontrou-se com a mulher em um cemitério, saíram da Rússia e conseguiram chegar ao Brasil. Eu tinha 12 ou 13 anos e ele tinha uns 85. Era muito difícil, porque ele mal falava português e eu não falava russo. Foi assim que eu consegui aprender. Claro que, com a falta de prática, eu esqueci muito, mas continuo gostando da língua”, conta.

Ao longo da vida, Saul sempre continuou a buscar peças russas em leilões. “Um grande colecionador morreu recentemente, e eu consegui comprar muita prata russa, faqueiros etc. Outra amiga minha russa, a Margarida Lara tinha uma grande coleção e, depois que ela faleceu, consegui comprar algumas coisas desse tipo, do século 18, século 19, da coleção dela, além de ganhar algumas coisas", conta. 

O advogado conta que seu círculo russo em São Paulo era bastante antissoviético. Por isto, mesmo durante a ditadura ele não sofria perseguição por seus contatos mais a leste do globo, diferentemente do ocorrido com outras pessoas – até mesmo o professor e fundador da cadeira de russo da USP, Boris Schnaiderman, chegou a ser detido, no meio de uma aula, no período.

“Eu fui pela primeira vez ao país quando ainda era União Soviética, nos anos 1980, no início do governo Gorbatchov. Meu interesse pelo último tsar sempre foi muito grande, mas da primeira vez que fui à Rússia não se falava de Nikolai: era tabu, falava-se apenas de Pedro, o Grande, sempre que se tratava de império russo – sequer Catarina, a Grande era citada. Fui instruído a não perguntar muito então”, conta.

Quando da visita nos anos 1980, uma guia chegou a lhe negar a existência do Palácio de Alexandre, em São Petersburgo – para depois apontar com o dedo para o edifício em meio ao trânsito, de relance, como algo proibido.

Em suas inúmeras andanças pela Rússia desde os anos 1980, Saul chegou até mesmo a assistir, do lado de fora, à cerimônia do enterro dos restos mortais dos Românov, em 1993, na Catedral de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo, e participar da homenagem que se seguiu à noite no Teatro Marínski, em camarote vizinho ao do príncipe britânico Michael.

Desse enorme interesse pelo tsar é que decorreu a obtenção de inúmeras de suas dezenas de peças russas. Entre elas, está a medalha comemorativa, datada de 5 a 9 de outubro de 1896, da visita a Paris em que o tsar colocou a pedra inicial de construção da Ponte Alexandre 3°, que atravessa o rio Sena.

“A maioria das peças eu comprei aqui no Brasil mesmo, em antiquários e leilões, porque sempre me avisam quando surge algo russo. Essas coisas chegaram por meio de diplomatas e de pessoas mais ricas que as compraram nos grandes leilões dos anos 1930, quando a URSS precisava de dinheiro rápido. Mas na Europa há leilões especializados, por exemplo, só em prata russa”, explica.

Um ovo de esmalte da coleção de Saul, por exemplo, é assinado por Pável Ovtchinnikov (1830-1888), joalheiro que trabalhava no ateliê do renomado Peter Karl Fabergé. “Os ovos imperiais Fabergé eram um presente de tradição imperial estabelecida por Aleksandr 3° e continuada por Nikolai, que encomendou dois, um para a mãe, e outro para a tsarina. Esses são raríssimos”, explica. Porém, outras joias em formato de ovos espalhadas pela Rússia também têm grande valor.

Entre os objetos da coleção de Saul, há peças de prata russa, rara e peculiar. Uma de suas formas mais características no país é o Nielo, mais escuro e bastante trabalhado com desenhos e formas. A malaquita é outra paixão do colecionador, que tem uma pesada mesa em seu hall de entrada com tampo feito da pedra.

“A malaquita é uma pedra muito típica do país e que só existe ali e na África, e foi muito apreciada na Rússia tsarista. Eu tinha uma caixinha e dois ovinhos de malaquita e de repente surgiu uma mesa russa de bronze do final do século 19 ou final do 18 com tampo de malaquita: consegui arrematar, apesar de ficar um pouco endividado algum tempo”, conta, rindo.

O sofá imperial também é típico e está presente em diversos museus russos até a atualidade: no museu Iussúpov e no Púchkin, entre outros, há modelos similares aos de Saul, característicos do período. Outras peças dignas de nota em sua coleção são os quadros, com  pinturas marinhas assinadas por Pável Lukiánov, discípulo de Ivan Aivazóvski, que emigrou para o Brasil com a mulher, Tatiana. Depois de viúva, ela vendeu as telas ao amigo Saul.

"Essas peças constituem meu pequeno acervo e os russos vêm aqui só para ver o ‘museu russo de São Paulo’”, diz, rindo.

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