Daniela, 40, e Moissei Mountian, 69, fundadores e parceiros editoriais da 'Kalinka'.
Marina DarmarosEm 2005, após se graduar em História na USP, a filha de russos Daniela Mountian e um amigo jornalista tiveram a ideia de abrir uma editora. Logo, o amigo partiu para a República Tcheca e deixou o sonho para trás, mas o pai de Daniela, Moissei Mountian, 69, que já havia instituído “Kalinka” como o nome ideal da nova casa tornou-se o parceiro comercial efetivo de Daniela – além de tradutor, conselheiro editorial, coeditor etc.
A partir dali, ainda levaria três anos para que a “Editora Kalinka” publicasse seu primeiro título, mas a estreia foi memorável: a primeira tradução literária de Moissei para o português, “O Diabo Mesquinho”, de Fiódor Sologub, já entrou para o top 10 de melhores traduções do ano do Prêmio Jabuti de 2009.
“Minha ideia era, basicamente, focar livros que não eram editados na União Soviética. Esses títulos não eram necessariamente antissoviéticos, mas iam de encontro à ideologia vigente”, conta Moissei, um ávido devorador de literatura.
“Naquela época, existia a ideia do realismo socialista, instituída nos anos 1930, e tudo precisava ser escrito conforme essa teoria. Então meu objetivo era publicar esses escritores semiclandestinos, que foram proibidos, ou que eram publicados antes dessa teoria e depois deixaram de sê-lo”, completa.
“O Diabo Mesquinho” faz jus ao escopo editorial de Moissei. Uma das figuras centrais do simbolismo russo, Sologub (1863-1927) levou dez anos para escrever o título, entre 1892 e 1902. Mas, apesar de ter recebido com esperança a revolução de fevereiro, ele passa a expressar sentimentos abertamente contrários aos bolcheviques em seus artigos de jornal a partir do verão de 1917.
Assim, deixou de ser publicado e, depois de inúmeras tentativas frustradas de deixarem a Rússia soviética, sua mulher, Anastassia Tchebotarévskaia comete suicídio – apesar de todos os laços que tinham com a esquerda, já que ela teve um irmão executado, outro mandado para o exílio, e uma irmã aparentada de Lunatcharski, enquanto o escritor encontrava-se com esse e Trótski, além de muitos outros líderes da esquerda, sobretudo no exterior, entre 1911 e 1914.
Estreia da 'Kalinka', que completa dez anos no ano que vem, foi com 'O diabo mesquinho', que entrou de cara para o top-10 do Prêmio Jabuti de tradução. / Foto: Marina Darmaros
O começo de tudo
Engenheiro por formação, Moissei chegou ao Brasil com a esposa no final de 1972, aos 25 anos, trocando a Moldávia soviética pela ditadura Médici.
“Vim, primeiro, porque tivemos um pouco de sorte, porque naquela época ninguém saía de lá, a não ser alguns expulsos”, conta, acrescentando que já tinha um tio por aqui.
No país, o casal de engenheiros logo se colocou no mercado e aprendeu o português muito rápido, apesar de antes só conhecer o russo: tanto o fato de serem ávidos leitores, como o contato diário no trabalho facilitaram a adaptação.
Daniela, 40, é a segunda de três filhos do casal, e não era educada formalmente no russo até surgir a ideia da “Kalinka”.
“Ainda em 2005, meu pai passava pela rua Maria Antonia e viu uma placa ‘Curso de Russo com professora da USP’. Foi então que uma pessoa fundamental entrou na nossa vida, a professora Aurora Bernardini”, conta.
Foi com ela que Daniela começou a frequentar as aulas da Universidade de São Paulo, onde ingressou no mestrado e, posteriormente, doutorou-se. Como consequência, também visitou o país diversas vezes em intercâmbios acadêmicos e para pesquisas nos arquivos sobre Daniil Kharms (1905-1942), objeto de seu doutorado e autor que rendeu mais uma indicação da "Kalinka" ao Jabuti, com a versão a seis mãos de "Os sonhos teus vão acabar contigo", cunhada por Daniela, Moissei e Aurora.
Cultuada na academia e fora dela, Bernardini auxiliou na produção do primeiro livro, que revisou, e de muitos outros. Ela também trouxe ideias de títulos, como as vindouras memórias, que ela mesma verteu ao português, de Nina Berbérova (1901-1993) - escritora da primeira leva de emigrantes russos que viveu em Paris e Berlim até, finalmente, estabelecer-se nos Estados Unidos.
Daniela e o pai, fundadores da editora voltada exclusivamente a literatura russa dissidente, nos anos 1970./ Foto: Arquivo pessoal
“É muito interessante como Berbérova descreve nesse livro a vida antes da revolução e seus encontros com escritores e poetas – Búnin, entre outros -, a elite russa que morava em Paris”, conta Moissei.
Outra figura importante na vida da “Kalinka” é a mãe de Daniela, Sofia Mountian, que já tinha uma editora, parte de sua escola de autoconhecimento “Instituto Solaris”.
Títulos, Flip e parcerias
Depois de “Parque Cultural”, de Serguêi Dovlátov (1941-1990), lançado no final do ano passado, mais dois títulos do escritor foram adquiridos pela editora, um deles, a sair ainda em 2017. De geração já bem posterior, o autor realiza uma dolorosa emigração para os Estados Unidos em 1979, e “Parque cultural” traz muitos elementos autobiográficos dessa transição em prol da sobrevivência de Dovlátov como escritor.
Além dos próximos títulos dele, “O ofício” e “A troca”, a editora também já está finalizando a produção de “Salmo”, de Naum Gorenshtein (1932-2002), traduzido a quatro mãos por Moissei e outro finalista do Jabuti de tradução, Irineu Franco Perpétuo, 46, namorado de Daniela.
“Gorenshtein é mais conhecido por ter sido roteirista de Tarkóvski em ‘Solaris’ e, apesar de não ter sido creditado, em ‘Andrêi Rublióv’. É um grande investimento nosso, porque é um autor difícil, um livro de 400 páginas, polêmico, denso, e contemporâneo”, explica Daniela.
Além disso, com o anúncio de uma nova parceria da “Kalinka” com a editora “Hedra” em um “laboratório editorial”, as duas terão uma casa conjunta na Festa Literária Internacional de Paraty.
“Não fazia sentido irmos sozinhos à Flip, e a ‘Kalinka’ irá conosco. Lá, a Daniela e o Irineu Franco Perpétuo também participarão de uma mesa”, conta o editor-fundador da Hedra, Jorge Sallum, 44.
O acordo de dois anos firmado entre as editoras segue os moldes de outro, fechado entra a “Hedra” e a “Demônio Negro”, e visa a otimizar a captação de recursos, impressão, distribuição e divulgação das obras.
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