As receitas de maior interesse talvez sejam as relacionadas com amigos e familiares do Tolstói Foto: RIA Nóvosti
Depois da digitalização dos 90 volumes da obra do grande escritor russo Lev Tolstói, surge uma versão para iOS do livro de receitas de sua mulher.
A obra de Sófia Andrêevna Tolstáia vai para além da simples seleção das receitas familiares, pois o estudo de hábitos culinários da casa dos Tolstói permite entender melhor tanto o caráter do escritor, com suas buscas e contradições, como os costumes da sua época.
Folheando o livro, percebemos que “todo o cotidiano da família foi baseado na simplicidade e sinceridade”, considera Olga Siútkina, historiadora e investigadora da cozinha russa, que participou na elaboração de comentários para a edição.
“Não encontramos lá pratos finos de alta gastronomia. São refeições simples do dia-a-dia: varêniki, ovos estrelados, pudim de batata, sopa de cogumelos, priâniki.”
Iúlia Vrónskaia, chefe da Secção de Projetos Internacionais da Quinta-Museu de Lev Tolstói “Iássnaia Poliána”, acha que a alimentação da família era bastante típica para a época, “com umaúnica observação: talvez fosse mais simples e modesta do que a da nobreza do mesmo nível, porque a família não teve o hábito de fazer refeições suntuosas. Traço caraterístico da culinária da segunda metade do século 19 é a influência da cozinha francesa, que também transparece no livro de receitas da Sófia Tolstáia, o que pode ser observado pelos nomes dos pratos: maçãs à la Dophine, favas verdes à la maître d’Hotel, molho de pomme d’amour, frangos à la mayonnaise”.
As receitas de maior interesse talvez sejam as relacionadas com amigos e familiares do Tolstói. O livro traz muitas: bolo do doutor Anke, creme pascal de requeijão dos Bestujev, kvass de limão de Marússia Maklakova, passtilá de maçã de Maria Fet.
“Eis aqui a vida real: cada uma das receitas representa um episódio, se não uma página inteira da vida cultural russa”, frisa Siútkina.
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O bolo preferido na casa dos Tolstói era o Anke, com recheio de limão. Tem o nome de doutor Anke, amigo da mãe de Sófia, que cedeu a receita à família.
“Desde pequeno, lembro que em todas as ocasiões solenes, dias de grandes festas e dos nossos santos, sempre tínhamos para a sobremesa o bolo Anke. Não houve festejos sem ele”, conta Iliá Lvovitch, filho de Tolstói, em seu livro de memórias.
No entanto, após a reviravolta espiritual do chefe da família, os costumes mudaram. Todo aquele modo de vida e da gestão da economia doméstica, que outrora era encarado como exemplar, passou a parecer impróprio a Tolstói, o que se revelou também na alimentação. Nos últimos 25 da sua vida Tolstói foi vegetariano, conforme suas convicções morais e filosóficas, mas não prescindia de laticínios nem de ovos.
Iúlia Vrónskaia comenta: “Ele gostava muitíssimo de ovos, que, para seus almoços, eram cozidos de várias maneiras: ovos estrelados simples, com cogumelos, em polpa de tomate ou com pão tostado; omelete dobrada, ovos mexidos com funcho, ovos mal cozidos, ervilhas com ovos escalfados, feijão e couve-de-bruxelas com ovos –no total, encontrei 15 pratos de ovos cozidos para ele.”
Sófia não apoiou as novas convicções do marido, mas começou a encomendar ao cozinheiro duas ementas de almoço: vegetariano para o marido e as filhas, que seguiram seu exemplo, e habitual para ela e os filhos. Estava sempre preocupada com a saúde de seu homem, sobretudo quando este já tinha idade avançada, e pensava muito em sua alimentação, pois os problemas que o faziam sofrer, além de morais, causados pela imperfeição da sociedade, eram também de caráter físico, relacionados com o trato intestinal.
Em 1897, Sófia escreveu no seu diário: “É difícil alimentá-lo, o vegetariano doente. Me esforço inventando as suas refeições. Hoje, dei-lhe a sopa de cogumelos e arroz, espargos, alcachofra, papas de sêmola de trigo feita com leite de amêndoas e avelãs picadas e uma pera cozida.”
Aleksandra, a filha mais nova, recorda: “Minha mãe sempre escolhia os alimentos mais leves para o meu pai, quase chegando a fazer um culto do processo de alimentação. Todas as noites, o cozinheiro Semión Nikoláievitch se reunia com ela para discutirem ementa, o que demorava muito tempo.”
A filha testemunha que a sopa que se fazia para ele nem sempre era realmente vegetariana: quando o escritor estava doente, Sófia e o cozinheiro adicionavam caldo de carne de vaca à sopa de cogumelos.
Atualmente, é possível provar no Memorial “Iássnaia Poliána” os pratos das refeições dos Tolstói, inclusive o bolo de Anke. Desde há pouco tempo, aqui se dá atenção especial ao renascimento das tradições culinárias da família. Em agosto, foi lançado um programa turístico gastronômico que já goza de popularidade. A edição do “Livro de Receitas” também consta no rol de iniciativas do museu.
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