É verdade que os estrangeiros ganham até sorvete para se vacinar na Rússia?

Joshua Levy; Kirill Zikov / Agência Moskva
A imprensa estrangeira divulgou com estardalhaço a vacinação de estrangeiros na Rússia. Oficialmente, a vacina Sputnik contra a covid-19 não está disponível para eles, mas, na prática, sim, eles têm se vacinado em massa. Conversamos com alguns desses felizardos.

O programa de vacinação da Rússia começou em janeiro de 2021. Isso significa que todos os cidadãos maiores de 18 anos podem ser vacinados contra o coronavírus, independentemente de sua profissão. A previsão é que 60% da população do país esteja vacinada neste ano.

No final de janeiro, a chefe do Rospotrebnadzor (órgão de vigilância dos direitos do consumidor), Anna Popova, declarou que estrangeiros residentes no país não teriam, porém, direito à vacina. “Na atualidade, nosso objetivo principal é vacinar o máximo de cidadãos russos vivendo na Federação da Rússia. Essa é a prioridade nacional”, disse.

Na prática, porém, quem não tem a cidadania russa pode, sim, tomar a vacina Sputnik V, e mesmo que não viva no país.

Vacina grátis e sorvete

Estamos no principal shopping center do país, o GUM, na Praça Vermelha. São 17h de sexta-feira. Há cartazes sobre o serviço de vacinação espalhados pelo shopping e, de quando em quando, uma voz nos alto-falantes lembra os viciados em compras que as seringas os esperam.

Em meados de janeiro, o governo divulgou ostensivamente que a vacina russa estava disponível ali, sem hora marcada ou pagamento. Depois, como um incentivo extra, os vacinados ganham um mimo bem russo: um pote grátis do delicioso sorvete cremoso da marca GUM (no pico de um inverno como aquele que derrotou Napoleão).

Estação móvel de vacinação contra o coronavírus no GUM.

“Das 10h ao meio-dia há filas, mas, depois, à tarde, fica bem calmo”, conta a equipe do centro de vacinação. O posto fica em uma das dependências comerciais: uma portinha de vidro com duas pessoas na recepção, um hall bem iluminado, um sofá e um cabideiro. O procedimento dura apenas alguns minutos: a pessoa preenche um formulário, deixa os dados de contato e entra no consultório. Passaporte e seguro médico obrigatório são os únicos documentos solicitados. Mas, se a pessoa não tiver o seguro, basta o passaporte – e não importa de que país.

O francês Nicolas Iljine foi ao GUM especificamente para tomar a vacina, munido apenas de seu passaporte francês: “Não tinha fila e só três pessoas estavam na minha frente. Não vi nenhum estrangeiro na sala”, contou ao RBTH.

“Eles não ficaram surpresos por eu ser estrangeiro e não disseram nada sobre estar me vacinando. Um médico olhou o questionário que eu tinha preenchido, perguntou por que eu usava bengala e carimbou um papel. Todos foram bacanas, amigáveis ​​e os cômodos eram limpíssimos”, diz Iljine.

“Depois da vacinação ganhei um certificado carimbado e um sorvete de brinde. E, como postei, com orgulho, meu feito no Facebook, vários amigos no exterior me perguntaram se podiam tomar a Sputnik V na Rússia e como funcionava. Eu disse que é muito fácil e que fiz isso para evitar meses de espera até que fosse minha vez de tomar a vacina em Frankfurt, onde resido”, completou.

O italiano Luigi Minari chegou a Moscou com visto de turismo no dia 13 de fevereiro e também foi ao GUM, mostrou o passaporte italiano e, após preencher o breve formulário, tomou a injeção. “Minha próxima dose será no dia 13 de março. Até agora, minha experiência foi muito boa. Apesar de morar na Itália e poder escolher outra vacina, escolhi a Sputnik porque essa vacina foi feita a partir de pesquisas antigas sobre outras vacinas totalmente seguras. Assim, o risco de efeitos colaterais ou problemas futuros não é grande. Além disso, a tecnologia dela (pelo menos para mim) é mais segura que a de outras vacinas, pois não funciona diretamente no RNA. Após a primeira aplicação não senti efeitos colaterais e estou bem.”

É importante frisar, porém, que esse modo de vacinação não gera o código QR necessário para viagens internacionais.

“À noite acordei com febre”

“Se você acha que pode ir ao GUM, tomar a vacina e receber um certificado para viagem internacional, saiba que isso não é possível porque, oficialmente, você não existe no sistema, e só as policlínicas têm acesso ao cadastro eletrônico do Ministério da Saúde”, afirma o britânico Joshua Levy.

Joshua Levy.

Para poder usar uma policlínica estatal russa, é preciso ter o seguro médico obrigatório — e para obter esta apólice, é preciso ter visto de trabalho ou residência na Rússia.

“Além disso, para viagens internacionais, é preciso obter uma tradução juramentada em inglês e a apostila do Ministério da Justiça da Rússia. Quase ninguém sabe disso”, explica Joshua, que foi a uma policlínica para tomar a vacina.

“Sou um dos poucos estrangeiros que recebeu o código QR de vacinação. Sei que não foi anunciado oficialmente, mas isso é a Rússia: tudo é possível aqui. Na primeira semana de dezembro, fui a uma policlínica regional e pedi a vacina, já que sou professor de inglês e trabalho com crianças pequenas, tendo automaticamente direito a ela. Na recepção, fui encaminhado a um clínico-geral para uma consulta”, lembra.

Lá, ele foi questionado sobre doenças recentes, problemas respiratórios e alergias: “Eu disse que não tinha nenhum problema. Quando terminaram as perguntas, me deram uma data para aa primeira dose.”

Joshua Levy.

A vacinação é feita em grupos de cinco pessoas, já que cada frasco contém cinco doses e deve ser administrada imediatamente após a abertura. “Quando cheguei, já havia quatro pessoas sentadas. a injeção foi no ombro. Não doeu. Aliás, eu já tinha tido covid.”

“A vacina começa a ter efeito dentro de 12 a 14 horas. Naquela noite, acordei com febre, mas era de se esperar. Tomei imediatamente um paracetamol e minha a febre baixou. Durante o dia, tive sintomas semelhantes aos de covid, principalmente letargia, fraqueza severa, dores no corpo e falta de energia. Mas os sintomas desapareceram no dia seguinte e a vida voltou ao normal.”

Joshua Levy.

Três semanas depois, Joshua recebeu a segunda dose da vacina —um vetor viral diferente injetado no corpo para induzir uma resposta imune. “Pessoalmente, minha reação à segunda dose foi mais forte do que a primeira. Os sintomas eram os mesmos, mas muito mais intensos. Mesmo assim, no terceiro dia, tudo se acalmou e voltei ao normal.”

“Não beber por dois meses”

Damien Rémy, da França, também foi vacinado em uma policlínica estatal. “Pensei muito nisso. Sou professor aqui e tenho problema de imunidade, por isso fiquei bastante preocupado em me infectar. Tenho dado a maioria das minhas aulas on-line, desde março de 2020, mas isso não é conveniente e não é o melhor para meus alunos.”

“Por isso, perguntei aos pais de um dos meus alunos que é médico. Ele me disse para ir a sua clínica. Tive uma consulta com um virologista, que me examinou, pediu para fazer alguns exames e, quando chegou o resultado, marcou uma data para minha vacinação. Eu tentei marcar sozinho a vacinação, mas ou era preciso esperar muito, ou me pediam tantos documentos que eu nem tinha como reunir”, diz Damien.

Na clínica, o informaram (em russo) o que aconteceria e quais formulários ele precisava preencher. “O tempo de espera foi muito rápido, apesar de sempre haver de 5 a 10 pessoas na fila.”

Após a primeira injeção, Damien teve febre e sentiu uma fadiga severa por 24 horas. Mas, depois disso, sentiu-se bem de novo. Após a segunda dose, o efeito foi semelhante, só um pouco mais fraco. Além disso, ele não consumiu bebidas alcoólicas por seis semanas.

“Algumas pessoas na Rússia dizem que você não deve beber por dois meses, outras dizem dois dias antes e dois dias depois. Eu não sabia quando seria finalmente vacinado, por isso não bebi por pelo menos seis semanas. Algumas pessoas na França estão com inveja, porque está devagar por lá e ainda há muitas restrições, mas elas também têm medo de pegar o vírus.”

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