Alasca preserva dialeto russo raríssimo, o niniltchik, até os dias atuais

Estilo de vida
JOSH NADEAU
Em uma remota aldeia do Alasca, um dialeto russo sobrevive até o presente, em meio a tantas conexões linguísticas entre a América do Norte e a Federação da Rússia.

Em meados de julho de 2020, ativistas norte-americanos buscando corrigir injustiças raciais históricas surgiram no mais improvável dos lugares: a costa do Alasca. Seu alvo era a estátua de um comerciante e oficial russo do século 18, Aleksandr Barânov, instalada em Sitka, a cidade que ele fundou em 1799.

A estátua de Barânov é o mais novo episódio na batalha política pela memória nos Estados Unidos. Diversos monumentos, especialmente aqueles dedicados a oficiais proeminentes do Estado e militares ligados à escravidão, foram derrubados ou ameaçados como um sinal da aversão moderna às injustiças do passado. A relação de Barânov com as populações indígenas locais, principalmente a nação Tlingit, era cheia de violência.

A estátua será transferida a um museu local, como testemunho da complicada história de uma região que foi comprada da Rússia Imperial pelos EUA em 1867 - fato que muitos americanos desconhecem (leia mais sobre Barânov e a transferência da estátua aqui).

Mas há outra relíquia, talvez ainda mais atraente, nas aldeias russas no Alasca: o dialeto conhecido como russo Ninilchik. Foi ele que estabeleceu um vínculo muito forte entre a Rússia europeia e os povos locais, como os tlingit.

Aldeia manteve (ou parecia ter mantido) a língua

O niniltchik russo foi assim batizado em homenagem a uma vila homônima, localizada aproximadamente 300 quilômetros a sul de Anchorage, em uma pequena península perto da capital do Estado. Essa aldeia, junto com a cidade de Kodiak, é uma das únicas comunidades de língua russa que restaram na ex-província do Império Russo.

Em vez de ser governada pelo governo imperial, a colônia do Alasca era administrada por uma entidade conhecida como Companhia Russo-Americana – da mesma forma como a Índia Britânica era governada pela Companhia das Índias Orientais. Ao invés de governadores, portanto, eram comerciantes, como Barânov, que trabalhavam como administradores autorizados pelo Estado.

As três principais famílias da aldeia — Kvasnikov, Rastorguev e Oskolov — formavam um tipo de dinastia que sobrevive até a atualidade e preservaram a língua russa. Mas o russo que eles usam até hoje é diferente do russo padrão usado na Eurásia e entre a diáspora russa - que é frequentemente desprezado como uma versão "inferior" da língua. Atualmente, esse dialeto está sendo estudado com o objetivo de evitar seu desaparecimento.

“O russo niniltchik está associado, na mente de seus falantes, à cultura camponesa e a um estilo de vida de subsistência”, explica o linguista Conor Daly, que se debruça sobre o dialeto. Esse modo campônio é frequentemente conectado a uma simplificação da língua: nele, perdem-se muitas das complexas estruturas do russo padrão, entre elas características gramaticais únicas, como os gêneros.

Segundo Daly, isso pode acontecer com línguas que sobrevivem em uma "bolha" independente dentro de uma cultura que busca reprimi-las. Depois que o Alasca passou para as mãos dos norte-americanos, professores escolares e funcionários do governo impuseram o uso do inglês nas escolas públicas, deixando à população russa de niniltchik a opção de falar sua língua nativa apenas em casa ou informalmente. Alguns deles chegaram até mesmo a esquecer como escrever a língua, tornando-se analfabetos em russo.

O dialeto da aldeia teve que competir com o russo padrão devido a duas ondas de imigração: a dos Velhos Crentes (leia mais sobre os “staroviéri” no Brasil aqui) que fugiram para a Costa Oeste norte-americana após a Revolução de Outubro de 1917 e se mudaram para o Alasca para não perder sua cultura entre os americanos “seculares” no Oregon e no Estado de Washington, e os russos que partiram após o colapso da União Soviética, em 1991, e hoje vivem próximo das cidades de Anchorage e Fairbanks.

Assim, o dialeto niniltchik é frequentemente visto como uma peculiaridade, uma exceção linguística em um país estrangeiro. Mas a ligação entre as línguas encontradas na Rússia e na América do Norte é ainda mais complexa.

O grupo de línguas dene-ienisseianas: uma hipótese realista

O grupo de línguas dene, que inclui as línguas tlingit e athabasca faladas no Alasca, também foi cogitado como motivo da ligação entre o Alasca e as terras do antigo Império Russo - no caso, com o interior da Sibéria.

Em 2008, o linguista Edward Vajda propôs que as línguas dene e as faladas na região do Ienissei, no norte da Sibéria, tinham uma ligação, dando continuidade a hipóteses formuladas no início do século 20 e nomeando-as de línguas dene-ienisseianas. De acordo com Vajda, é possível que os ancestrais de ambos os povos tenham sido siberianos, corroborando à tese de que os norte-asiáticos teriam cruzado o Estreito de Bering até a América do Norte e se dividido em várias tribos e nações.

E esta não é a única hipótese ligando a América do Norte e a Sibéria. O grupo de línguas esquimó-aleútes, cujos falantes mais conhecidos são o povo inuíte do Canadá (assim como os groenlandeses), também é conectado com a Sibéria pelo yupik, uma língua em risco de extinção falada na erma Região Autônoma da Tchukotka, na Rússia. Nesse caso, o grupo de línguas siberianas, quase extinto na terra natal, encontrou espaço no Ártico norte-americano.

As duas teses acima foram recebidas com um cuidadoso entusiasmo pela comunidade linguística, mas há ainda outras que foram consideradas mais improváveis. Uma delas é a da existência de um grupo de línguas Ural-siberianas, que reuniria as línguas inuíte e aleúte às línguas russas dos Urais, um grupo que inclui o finlandês e até o húngaro. Mas teorias que englobam famílias linguísticas muito amplas, como essa, são frequentemente recebidas com suspeita pelos pesquisadores acadêmicos.

O indício mais provável em tudo isso, porém, é que houve migrações das línguas siberianas e russas ao longo do norte do oceano Pacífico e que as línguas que descenderam daí viviam lado a lado e eram faladas tanto pelos russos niniltchik, como pelos vizinhos tlignit e aleut. Assim, a globalização, ao que parece, não é apenas um fenômeno moderno.

O niniltchik hoje

Como consequência de políticas culturais que preferiam o inglês em relação às tradições linguísticas mais antigas, restaram poucos falantes do niniltchikrusso hoje na aldeia. Um casal de pesquisadores moscovitas, Mira Bergelson e Andrêi Kibrik, visitou a vila na década de 1990 para trabalhar na preservação da língua.

“Fomos à escola de língua inglesa inaugurada na década de 1930 para substituir a Escola Paroquial Ortodoxa Russa, que fechou em 1917”, contou Bergelson em uma entrevista publicada em 2013.

Na aldeia, o prédio da igreja ortodoxa russa foi reconstruído em meados do século 20, após um incêndio. Outros incêndios, vindos das colinas de Caribou, ameaçaram muitos prédios da aldeia em 2007. Mas ainda há ali descendentes das famílias Kvasnikov e Oskolkov, que trabalham em colaboração com linguistas que registraram diversos termos e documentaram em gravações pronúncias e sotaques que soariam estranhos aos ouvidos do russo contemporâneo. Alguns deles podem ser conferidos on-line no “Banco de Dados Russo Ninilchik”.

 

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