Os inusitados usos dos gentílicos femininos em russo

Educação
IÚLIA KHAKÍMOVA
Em russo, sapatos, ferramentas e armas são chamados pelos mesmos substantivos que designam algumas nacionalidades. O curioso é que isso ocorre especificamente na flexão de gênero para o feminino desses gentílicos...

A homonímia (palavras escritas de forma completamente igual, mas que ainda assim têm significados totalmente diferentes) acontece em várias ocasiões no russo com palavras que denominam pessoas e, ao mesmo tempo, objetos ou fenômenos. Isso porque os homônimos se dão graças ao sufixo russo “ka”: por padrão, esse sufixo indica o gênero feminino, mas desempenha várias funções ao mesmo tempo.

Em primeiro lugar, esse substantivo é utilizado para formar o feminino de um substantivo já existente que indica um indivíduo do sexo masculino (“studient” – “studientka”, ou seja, “estudante” no masculino e no feminino). Esse fenômeno é chamado em russo de "feminitivo".

Em segundo lugar, o sufixo “ka” forma diminutivos (por exemplo, “tetrad” e “tetradka”, ou seja, “caderno” e “caderninho”).

Em terceiro lugar, o sufixo “ka” forma os substantivos verbais (“stritch” e “strijka”, ou seja, “cortar” e “corte”).

Finalmente, o sufixo “ka” é necessário para formar substantivos a partir de combinações de palavras, já que o russo se distingue por uma tendência à abreviação (por exemplo, a “biblioteca Lênin” é mais conhecida como “Lêninka”).

Vejamos algumas relações entre objetos e gentílicos de nacionalidade no feminino em russo:

Amerikanka (americana)

Esta palavra significa “bilhar”. Alguns amantes deste jogo o chamam de “amerikanski pul” (bilhar americano), mas se usa           “amerikanka” mais frequentemente.

Afganka (afegã)

Para os militares russos, esta palavra significa, antes de tudo, o uniforme de campo. Ele começou a ser produzido no final dos anos 1970, mas passou a ser fornecido às unidades somente em 1984, primeiramente para o contingente destacado para a guerra no Afeganistão.

O conjunto tinha três peças de vestuário (jaqueta, calça e acessório de cabeça) e tinha tanto versões de verão como de inverno. Inicialmente, a afganka era feita de cor cáqui, mas, mais tarde, foram aplicadas cores diversas para os diferentes tipos de tropas.

Bolgarka (búlgara)

Na Rússia e na ex-União Soviética, esta palavra significa “rebarbadora”. Ela adquiriu este significado na década de 1970: foi quando a ferramenta da marca Eltos, produzida na cidade búlgara de Lovech, apareceu na URSS.

Depois desse nome carinhoso dado a uma perigosa ferramenta, as pessoas criaram expressões mais ambíguas, como, por exemplo: "você tem que segurar uma 'bolgarka' com mais força" (bolgarku nado derjat pokreptche).

Venguerka (húngara)

Esta é uma palavra com número recorde de significados. Além do gentílico feminino, ela dá nome também a uma ameixa nativa de casca escura a partir da qual são produzidas as ameixas secas.

Os pescadores também usam a palavra quando se referem a uma goma de pesca. Para os cozinheiros, é uma massa folhada com ricota ou maçã, enquanto os dançarinos a usam para denominar uma dança de salão que lembra um czardasz húngaro ou uma dança cigana.

Vietnamka (vietnamita)

Se você digitar a palavra “vietnamka” em um buscador na internet, verá imediatamente imagens de chinelos tipo “havaiana”. Na URSS, esses chinelos surgiram em meados da década de 1960 e, como se lembram os soviéticos daquela época, vinham em regime de troca, já que Moscou prestava assistência militar e técnica a Hanói.

Mais tarde, o país montou sua própria produção e os chinelos começaram a ser produzidos na cidade de Slantsi, na região de Leningrado (hoje, São Petersburgo). Foi assim que os icônicos chinelos de borracha ganharam mais um nome URSS: “slantsi”.

Gollandka (holandesa)

Na Rússia, um alto forno de tijolos, geralmente forrado com ladrilhos de cerâmica pintados (os azuis com brancos são considerados um clássico) é chamado de “gollandka”. Esses ladrilhos eram fabricados inicialmente na cidade holandesa de Delft, entre os séculos 17 e 18 e, posteriormente, em outros países europeus.

As “gollandkas” surgiram na Rússia graças a Pedro, o Grande. Antes dele, os fogões russos eram usados sem chaminés nas casas, o que significava que a fumaça entrava diretamente na sala. Esse método de aquecimento era perigoso, por isso o tsar ordenou que as fornalhas fossem construídas à maneira holandesa, com chaminés.

No mesmo período, Pedro estabeleceu a produção de ladrilhos brancos com padrão azul em Strelna. Ele contratou holandeses, suecos e alemães para construir a fábrica.

Ispanka (espanhola)

Esta palavra assumiu um significado sombrio em 1918, quando a pandemia de gripe espanhola começou. Apesar do nome, a fonte da gripe não era a Espanha, mas os Estados Unidos. As tropas americanas a trouxeram para a Europa e as primeiras notícias abertas sobre a pandemia foram publicadas na Espanha no final da primavera de 1918 — o que gerou o nome da gripe. Naquela época, 8 milhões de pessoas, ou 39% da população, foram infectadas no país.

Na União Soviética, a gripe espanhola era considerada uma “arma bacteriológica” usada pelos inimigos da Revolução contra o país. Durante a pandemia, foram notificados mais de 1,25 milhão de casos em todo o país (os números reais obviamente eram muito maiores).

Serbianka (sérvia)

O nome desta dança vem de um velho gentílico usado em relação aos sérvios, “serbianie” (em russo contemporâneo, “serb”). A palavra “serbianka” se difundiu no final do século 18. Segundo os pesquisadores, ela surgiu na própria Rússia, mas foi influenciada por uma dança folclórica cigana.

Finka (finlandesa)

Existe um tipo de faca chamada “finka” na Rússia. O culto às facas se desenvolveu ativamente no território da Finlândia devido à proibição de armas ali, que veio da Suécia e, depois, do Império Russo (em períodos diversos, a Finlândia fez parte desses dois Estados).

As facas eram consideradas uma ferramenta doméstica, então a proibição não se aplicava a elas e havia muitos tipos de facas: para caça, pesca e uso doméstico.

Devido à proximidade da Finlândia com São Petersburgo, as facas finlandesas ganharam grande popularidade na cidade - especialmente no mundo do crime. Uma tentativa de controlar a circulação de facas foi feita apenas no início da década de 1920.

A Rússia também conhecia bem a faca finlandesa devido aos quatro grandes conflitos armados com a Finlândia entre 1918 e 1944. Até 1941, técnicas de manuseio e defesa de facas foram incluídas no “Manual de treinamento de combate corpo a corpo do Exército Vermelho”.

Tchechka (tcheca)

As “tchechkas” são familiares para absolutamente todos na Rússia e na ex-União Soviética: no jardim de infância, era um calçado de ginástica obrigatório. Esses calçados esportivos de couro e sola fina foram criados na República Tcheca na década de 1870, mas apenas um século depois surgiram na URSS.

“Nenhum treino podia ficar sem shorts pretos sobre meias-calças brancas, uma camisa com babados e… ‘tchechkas’ pretas. As meninas usavam as mesmas meias-calças, vestidos brancos e 'tchechkas' brancas. Ainda me lembro do som das 'tchechkas' arrastadas no chão do jardim de infância", escreve um internauta em um fórum na internet chamado “De volta à URSS”.

Os soviéticos preferiam os sapatos tchecoslovacos porque eles eram mais esteticamente agradáveis que os do resto da URSS. Suas remessas desapareciam rapidamente das prateleiras e era mais fácil encontrar um par de sapatos tchecoslovacos no mercado negro do que nas lojas.

Iaponka (japonesa)

A palavra “iaponka” é o jargão médico para endoscopia. O nome surgiu porque que os sistemas endoscópicos importados pelas instituições médicas russas frequentemente vinham do Japão.

LEIA TAMBÉM: Não, os russos não dizem "na zdoróvie", quando brindam!

Para ficar por dentro das últimas publicações, inscreva-se em nosso canal no Telegram