As 5 principais distopias da literatura russa

Cultura
ALEKSANDRA GUZEVA
A distopia como gênero apareceu na literatura russa após a Revolução de 1917. Esse ponto de virada na história russa deu um poderoso impulso criativo para muitos escritores, que anteciparam “1984”, de George Orwell, e “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley.

Os especialistas em literatura acreditam que a maioria das distopias do século 20 foi inspirada nas “Notas do Subterrâneo”, de Fiódor Dostoiévski, e no seu anti-herói, com suas ideias distorcidas sobre o sistema social e a moralidade.

A distopia como gênero apareceu na literatura russa somente após a Revolução de 1917. O interesse por distopias foi crescendo em ondas. Nos tempos soviéticos, elas foram proibidas porque, na sua maioria, eram uma sátira ao sistema bolchevique. No entanto, elas apareciam de vez em quando na imprensa não oficial e eram publicadas no Ocidente. Durante a perestroika, uma enorme quantidade de obras antes proibidas foram parar nas prateleiras das livrarias soviéticas.

Uma nova onda de interesse por distopias ocorreu na década de 2000 e continua até hoje. Escolhemos as cinco principais obras russas deste gênero:

1. Evguêni Zamiátin, “Nós” (1921)

Quase todo mundo conhece Evguêni Zamiátin como o autor de “Nós”, marco da literatura distópica do século 20. Nele, descreve um mundo aparentemente ideal em que o Estado Único suprimiu a liberdade em nome da felicidade.

Zamiátin opôs-se abertamente a Lênin, correspondia-se com Stálin e foi um dos primeiros dissidentes da Rússia Soviética.

“Nós” descreve um Estado totalitário, reminiscente do comunismo de guerra, onde a vida de uma pessoa, mesmo a íntima, está sob o controle das autoridades, e, em vez de nomes, os cidadãos são identificados por números em série. O livro foi publicado no exterior e ficou proibido na URSS até 1988. O autor foi preso, mas logo libertado graças a inúmeras petições de amigos influentes. A obra “1984”, de George Orwell, assim como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, foram altamente inspiradas em “Nós”.

Leia mais sobre Evguêni Zamiátin aqui

“Nós” foi publicado no Brasil pelas editoras Aleph e 34.

2. Andrêi Platônov, “A escavação” (1929)

“A escavação” é o romance mais conhecido de Andrêi Platônov. Escrita em 1929, a obra continuou inédita na própria União Soviética até 1988. Neste livro, Platônov retrata, de forma sombria e satírica, a história de um grupo de primeiros trabalhadores soviéticos tentando cavar as fundações de um grande edifício — que nunca será construído.

A história de Platônov é uma sátira à URSS com a sua economia planificada, o primeiro plano quinquenal e grandes projetos de construção socialistas.

Em uma resenha do livro para o “Times Literary Supplement”, Geoffrey Hosking escreveu que o poder do livro está em revelar “a mistura estranha e atormentada de esperança e desespero que muitas pessoas comuns devem ter vivido durante a revolução de Stálin a partir das hierarquias”.

 “Certamente, não há outro escritor capaz de transmitir, ao mesmo tempo, a beleza e a esperança do sonho soviético e sua terrível realidade”, disse o tradutor Robert Chandler sobre a obra em entrevista à “The New Yorker”.

Platônov também se caracteriza por uma linguagem deliberadamente complexa, que acompanhava a nova realidade. A chamada “Novilíngua”, ou seja, o uso de novos termos e neologismos é uma das características que une quase todas as distopias russas.

Leia mais sobre Andrêi Platônov e seu impacto na literatura russa aqui.

“A escavação” foi publicado em Portugal pela editora Antígona.

3. Arkádi e Boris Strugátski, “Piquenique na estrada” (1972)

Nos anos 1970, diversas Zonas estranhas apareceram na Terra. As leis da física não se aplicam ali e é mais provável que as Zonas tenham sido criadas por uma civilização avançada de outro planeta.

As pessoas não têm permissão para entrar nessas Zonas, mas os chamados “stalkers” — gente fora da lei — entram na Zona e coletam artefatos com características alienígenas e depois ganham dinheiro vendendo esses objetos no mercado paralelo. Mas os objetos podem ser perigosos para a humanidade se eles acabarem nas mãos erradas. Os “stalkers” arriscam suas vidas todos os dias, mas também percebem que não podem viver sem a Zona. 

Este é provavelmente um dos livros mais famosos escritos pelos mais renomados irmãos da ficção científica, e também serviu de inspiração para o clássico cult “Stalker”, de Andrêi Tarkóvski. Além disso, a série de videogames, S.T.A.L.K.E.R., é baseada nesta obra.

“Piquenique na estrada” foi publicado no Brasil pela editora Aleph.

4. Tatiana Tolstáia, “Kis” (2000)

Tatiana Tolstáia, parente distante de Lev Tolstói, começou a escrever seu primeiro romance, “Kis”, em 1986, logo após o acidente na usina nuclear de Tchernóbil (ou Chernobyl). Esta obra distópica ainda não foi vertida para o português, mas está disponível em francês (“Le Slynx”) e inglês (“The Slynx”). O título original em russo, “Kis”, é intraduzível, proveniente de uma palavra inexistente na língua e que remete ao modo de chamar gatos.

A obra apresenta um mundo pós-apocalíptico onde tudo mudou drasticamente — tudo o que as pessoas haviam construído e criado foi destruído, inclusive sua língua. Os humanos não existem mais, foram substituídos por criaturas que falam um idioma bizarro.

Kis” é um poder sombrio que ninguém viu, mas assusta todos com seu uivo. Também pode matar de repente ou levar cérebros embora. A criatura hedionda e repugnante torna a vida na cidade pós-apocalíptica ainda mais difícil.

Tolstáia levou 14 anos para escrever este romance. Nela, ela brinca com a língua, criando neologismos e usando gírias caricaturais e escolhas obscenas de palavras.

Imediatamente após seu lançamento, o romance se tornou um best-seller, gerando uma onda tanto de elogios quanto de críticas. Foi recebido como uma mistura bem-sucedida dos estilos dos irmãos Strugátski e de Zamiátin.

5. Vladímir Sorókin, “O dia de um oprítchnik” (2009)

Sorókin é frequentemente chamado de profeta. O seu romance se passa na “nova Idade Média”, onde os padrões de vida, a moralidade e a ordem social regressaram a tempos sombrios, enquanto o progresso tecnológico avançou.

Um futuro distópico que parece um passado distante não tem nada de novo, mas é então que entra Sorókin propondo um Império Russo ressuscitado. Muito antes de a geopolítica se mostrar estranhamente profética, Sorókin detalhou uma Rússia cada vez mais isolada que usa os sonhos de sua antiga glória como base para uma grandiosa visão social.

Os “oprítchniks” eram a guarda particular do primeiro tsar de Toda a Rússia, Ivan, o Terrível, (1530-1584) e ganharam uma reputação assustadora enquanto atravessavam o território em seus cavalos negros com cabeças de cachorros cortadas com machados penduradas nos pescoços dos cavalos. Leia mais sobre quem eram os verdadeiros “oprítchniks” aqui. Já os oprítchniks modernos de Sorókin, sofreram atualizações: empunham armas de laser e dirigem carros esportivos, mas também “decorados” com cabeças de cachorros cortadas, além da tradição de pilhagem desenfreada.

“O dia de um oprtíchnik” foi lançado em português pela editora 34.

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