Andrêi Platônov, o gênio que apoiava o comunismo, mas zombava do sistema soviético

Andrêi Platônov, em 1948.

Andrêi Platônov, em 1948.

Sputnik
Na Rússia, muito poucos escritores tiveram tanto impacto quanto o soviético Andrêi Platônov.

 “Um escritor notável de nosso tempo” e uma das principais figuras da literatura do século 20, ao lado de Marcel Proust, Franz Kafka, Robert Musil, William Faulkner e Samuel Beckett: era assim que o poeta ganhador do Prêmio Nobel Joseph Brodsky descrevia Andrêi Platônov (1899-1951).

O detalhe é que Platônov, ao mesmo tempo em que apoiava a Revolução e se uniu ao Partido Comunista, escrevia livros muito complexos e impiedosos quanto ao sistema vigente, expondo uma sociedade totalitária.

Início de carreira

Filho de um ferroviário, Platônov nasceu na cidade de Vorônej, em 1899. Ele foi inicialmente registrado como Andrêi Klimentov, e criou o pseudônimo em 1920 para homenagear o pai, Platôn Klimentov, autor de algumas invenções.

O escritor era o filho mais velho entre onze irmãos, e arrumou seu primeiro emprego como mensageiro, aos 13 anos de idade, quando começou a escrever poesia. Mas, seguindo os passos do pai, o adolescente trabalhou como assistente de engenheiro na Ferrovia Sudeste, sinônimo do poder industrial soviético na época. Uma das imagens mais recorrentes usadas por Platônov era a do trem ou locomotiva, que se referia metaforicamente ao tema da revolução e da utopia,.

Andrêi Platônov, em 1925.

Como muitos outros jovens de sua geração, Platônov recebeu de braços abertos a Revolução de outubro de 1917. Quando a Guerra Civil estourou, ele era assistente de maquinista, e entregava munições ao Exército Vermelho.

Três décadas depois, porém, o mais soviético de todos os escritores acabaria considerado um pária, perseguido pelo regime soviético.

Amor e ódio à literatura

O primeiro livro de Platônov, “Eletrificação”, foi lançado em 1921. Ao longo da década de 1920, seus contos foram publicados nas principais revistas literárias soviéticas. Ele começou a ganhar relevo na cena literária local, trabalhava como jornalista e participava de palestras sobre questões filosóficas e políticas.

Apesar do sucesso inicial, a literatura não foi sua atividade principal. Depois de se formar no instituto politécnico, Platônov trabalhou como engenheiro elétrico, introduzindo eletricidade à agricultura local após a seca letal que atingiu Povoljie, em 1921.

Depois de testemunhar as consequências de uma fome devastadora que poderia ter sido evitada, Platônov disse que não podia mais desfrutar de uma “atividade contemplativa”, ou seja, a literatura. Vários de seus textos da década de 1920 apresentavam camponeses famintos e empobrecidos.

Em um esforço para evitar situações semelhantes no futuro, o escritor conseguiu um emprego na filial de Vorônej da agência de gestão de terras. Ele conduziu a escavação de cerca de 763 lagos, cavou 315 poços, construiu várias pontes e represas e instalou três estações elétricas.

No final da década de 1920, Platônov reduziu seu envolvimento com a engenharia elétrica em favor da escrita. O romancista mudou-se para Moscou, onde sua carreira literária estaria fadada ao fracasso.

Ambivalência

Platônov estava comprometido com os objetivos do plano soviético de construção de uma sociedade socialista, mas seus romances e contos tinham vida própria, que ia na contramão ao zombar dos desastres burocráticos da ideologia soviética. Esse dualismo era perigoso e acabou custando a carreira de Platônov.

Esperava-se que escritores soviéticos “corretos” celebrassem as conquistas da industrialização e da coletivização, e não criticassem amplamente o sistema. Isto sem dúvida significou um sinal vermelho para Iôssif Stálin, que anotou a palavra “bastardo” nas margens da revista “Krásnaia Nov”, onde o romance de Platônov “Para Uso Futuro” tinha sido publicado.

Mas isso não significa que Platônov fosse um inimigo do comunismo, do regime soviético, da coletivização etc. Ao contrário da maioria de seus colegas, como Isaak Babel, Iúri Olécha, Evguêni Zamiátin, Mikhaíl Bulgákov e Mikhaíl Zóschenko, que escolheram brincar com figuras de linguagem, Platônov se resignou à linguagem crua da época, às vezes sacrificando os meandros da trama e reviravoltas estilísticas.

Obras mais notáveis

Platônov não foi apelidado de “mestre do realismo socialista" à toa. Sua obra-prima, “Tchevengur”, (único romance concluído de Platônov) retrata os bastidores da vida soviética durante a Nova Política Econômica de Vladímir Lenin na década de 1920. É um daqueles livros que é preciso ler várias vezes para entender as ideias que o circundam.

Tchevengur é uma cidade utópica onde o comunismo está sendo introduzido em um ritmo recorde. O resultado é uma catástrofe que Platônov, que testemunhou a coletivização de Stálin, descreve com espírito diabólico.

O romance estava pronto para publicação quando os censores soviéticos o proibiram no último minuto por razões ideológicas que ameaçavam a construção do socialismo. Platônov disse ter escrito romance com "intenções diversas", mas ninguém o escutou. Ele nunca tinha sido publicado por inteiro até 1988.

Andrêi Platônov, 1947.

Sua obra seguinte, “O poço de fundação”, é um romance sombrio e perturbador a la Kafka. Nele, um grupo cava a fundação de um edifício no meio do nada, para que todos vivam felizes um dia.

Platônov mostra a fome e a morte ao retratar trabalhadores, engenheiros e camponeses isentos de todos os sentimentos bons enquanto continuam o infindável trabalho e cambaleiam como zumbis.

“O poço de fundação”, escrito entre 1929 e 1930, é uma sátira ao stalinismo e a um sistema burocrático opressor que destruiu a esperança, a fé e a humanidade. Embora pareça apoiar o proletariado, com sua luta de classes e socialismo, Platônov mostra a face real do coletivismo, desprovido de emoções e sentimentos humanos, lembrando “1984”, de George Orwell.

Os destinos dos dois escritores se cruzaram de uma maneira estranha. A tuberculose ceifou a vida de Orwell em 1950, quando ele tinha apenas 46 anos. Platônov morreria da mesma doença no ano seguinte.

Ler Platônov é um desafio. Sua linguagem é perturbadora, mas eis o porquê: as preocupações de Platônov lidam com o futuro da nação sob o sistema soviético.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Platônov trabalhou como correspondente de guerra para o jornal soviético “Krásnaia Zvezdá” (Estrela Vermelha) e conseguiu publicar alguns de seus contos. Após a guerra, no entanto, seu trabalho desapareceu na obscuridade novamente. Um de seus romances inacabados, “Moscou Feliz” só foi publicado em 1991.

Por algum motivo, Platônov nunca foi preso. Mas Platon, seu filho de quinze anos, foi preso sob falsas acusações e enviado para o Gulag. O menino foi libertado dois anos depois, em 1940, mas morreu com tuberculose, que contraiu no cárcere. Andrêi Platônov contraiu a tuberculose de seu filho e morreu em 1951, aos 51 anos de idade.

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