7 gênios russos da performance radical

Performance de Fyodor Pavlov-Andreevich, expoente do novo "aktsionizm moscovita", na rua Oscar Freire, em São Paulo, em fevereiro de 2021.

Performance de Fyodor Pavlov-Andreevich, expoente do novo "aktsionizm moscovita", na rua Oscar Freire, em São Paulo, em fevereiro de 2021.

Marina Darmaros
Entre coletivos e artistas solo, gênero da “arte de ação” teve seu auge no país nos anos 1990, com queda de URSS, e continua a render frutos revoltosos até os dias atuais, impregnado de política e protesto.

O “aktionizm” (em russo), ou “arte de ação”, nasceu nos anos 1960 na Europa Ocidental e tem hoje como um de seus principais expoentes a iugoslava Marina Abramovic, que com a performance "Ritmo 0", de 1974, ficou, durante seis horas, à mercê do público em uma galeria em Nápoles, na Itália. Em frente à artista imóvel havia uma mesa com 72 objetos de todo tipo: uma rosa, vinho, uma pena, lâminas e até uma arma carregada, com a qual ela acabou ameaçada por um espectador. 

Na Rússia, o fenômeno passou a ter ressonância nos anos 1990, com a chegada de exposições de todos os tipos, bienais e outras performances que consolidaram o chamado “aktsionizm moscovita”. As ações dos jovens artistas representantes desse movimento, que se estende até os dias atuais (e tem, sim, representantes de outras paragens além da capital), são repletas de sentidos políticos ocultos e vão de encontro a todas as normas sociais vigentes. O resultado é poderoso:

1. Aleksandr Brener, o boxeador pichador

O poeta e artista performático Aleksandr Brener é o líder absoluto do “aktsionizm moscovita” e foi um dos mais notáveis no movimento ainda em seus primórdios no país, nos anos 1990. Mas sua escandalosa carreira na performance radical começou ainda antes, nas ruas de Tel-Aviv, em Israel. 

Em 1995, a performance “Primeira Luva” coroou sua carreira, quando Brener desafiou o primeiro presidente russo, Borís Iéltsin, a lutar com ele em plena Praça Vermelha. Em um dia gelado de fevereiro, o mês mais frio do temível inverno russo, Brener surgiu na praça com luvas e shorts de boxe e começou a gritar “Iéltsin, venha aqui fora!”

A ação entrou para a história e era um protesto contra o envio de tropas russas à Tchetchênia por ordem de Iéltsin. Como recorda o galerista Marat Guélman, que ajudou Brener a organizar a ação, a polícia deteve o “boxeador” apenas meia hora depois e logo o liberou.

Pouco depois, em 1997, Brener realizou outra ação controversa: desta vez, envolvendo uma obra do pintor russo de vanguarda Kazimír Malêvitch, autor do “Quadrado Negro”. Em visita a Amsterdam, Brener pichou com spray verde um cifrão sobre a pintura “Suprematismo” (ou “Cruz Branca”, de 1920-1927), de Malêvitch. Para Brener, o ato foi simbólico, e zombava de um mundo da arte obcecado por dinheiro. “Eu crucifiquei o dólar, como Jesus”, escreveu. 

Um tribunal holandês, no entanto, não achou graça e Brener foi condenado a cinco meses de prisão e a pagar uma multa de quase US$ 10 mil. O desfecho, porém, foi bom para todas as partes – a tinta verde foi removida com facilidade, e Brener achou a prisão holandesa “liberal e coerente”. 

O próprio Brener diz que o objetivo de suas performances é chamar a atenção a problemas colocados de escanteio. Em 1996, por exemplo, ele cobriu as janelas da Embaixada da Bielorrússia de ketchup devido a (mais um) incidente entre o país e a Polônia — quando um balão aerostático do último, por engano, atravessou a fronteira durante um festival e a Bielorrússia abriu fogo contra ele, matando dois pilotos.

Já a furiosa performance “O artista ao invés da obra”, parece ter servido de inspiração ao assustador artista russo que invade um jantar no filme sueco “The Square: a arte da discórdia” (2017) — mas a verdadeira fonte de inspiração do diretor Ruben Ostlund foi Oleg Kulik, que veremos a seguir.

2. Oleg Kulik, o homem-cão

Oleg Kulik, outro mestre russo da provocação é conhecido pelos dias em que imitou um cachorro, passeando de quatro por galerias de Varsóvia e Nova York. A primeira vez que Kulik incorporou seu cachorro louco diante do público foi em 23 de novembro de 1994.

Kulik, imitando cachorro, é levado por seu

Naquele tempo, quando a Rússia vivia uma grave crise, o artista não tinha dinheiro sequer para comprar pão. Assim, ele rastejou, feito um cachorro vira-lata, até Marat Guélman e se ofereceu para guardar a entrada da galeria dele. O colecionador, inicialmente, não gostou da ideia, mas, depois de perceber a vantagem, ligou de volta para Kulik e concordou.

Um jornal local chegou a escrever (nunca saberemos se de brincadeira ou a sério): "Até onde as pessoas chegaram! Elas correm nuas pelas ruas e atacam os transeuntes!" Em resposta, o duradouro prefeito moscovita Iúri Lujkóv (que ficou duas décadas no cargo, transformando sua mulher na mais rica da Europa, com tantos contratos de engenharia que sua empresa obteve em Moscou), prometeu tirar todos os peladões das ruas moscovitas. Isso, é claro, não se aplicou ao homem-cão.

Mais tarde, Kulik realizou performances acorrentado em Nova York, Estocolmo, Zurique etc. Durante uma delas, um transeunte se sentiu ameaçado e, puxando a corrente, apertou tanto a garganta de Kulik que ele desmaiou. Mas deu tudo certo no final das contas e ele recobrou a consciência.

3. Elena Kovilina, a musa em chamas

Com um rosto de estrela de Hollywood, Elena Kovilina surpreende como arquétipo glamuroso e uma espécie de antro de paz diante da selvageria: uma personificação da burguesia diante do desastre e da miséria que a circunda. É isso o que transparece, por exemplo, de sua performance "O senhor não gostaria de uma xícara de chá? ou  Queime o mundo da burguesia!", em que, em roupa de festa, toma chá diante de uma mesa em chamas enquanto chama convidados do público a se unirem a ela.

Membra da União dos Artistas da Rússia desde 1999, ela estudou artes em Zurique e foi laureada com o prêmio estatal russo "Inovação" em 2006 e o prêmio "Contra o Fluxo", da Academia Russa de Artes, em 2014.

Kovilina começou a testar o próprio corpo em performances ainda nos anos 1990, Foi assim que ficou à deriva em um barco sem remos, ficou com a corda no pescoço de pé em um banco e pediu aos espectadores que o chutassem (e um homem embriagado o fez mesmo, mas a corda, por sorte, arrebentou), bebeu um litro de vodca sob o som de canções de guerra e anunciou que atiraria no curador Marát Guélman — repetindo o ataque de Valerie Solanas a Andy Warhol.

As obras de Kovilina foram expostas mundo afora, nos EUA, Albânia, Emirados Árabes, Suécia, Finlândia, Austrália, República Tcheca etc. O conteúdo de suas performances está sempre ligado a política, problemas sociais, identidade, igualdade e repletas de ironia. Suas sátiras pungentes sempre tangem diversos problemas nacionais russos e mundiais. 

4. Grupo Voiná

Este coletivo de arte-protesto foi fundado em 2008 e, em português, seu nome significa "guerra". Entre suas ações mais polêmicas, estão a pintura de um pênis, em 2010, em uma ponte levadiça de São Petersburgo em frente ao FSB (órgão que substituiu a KGB), o tombamento de carro da polícia (com o policial dentro), em  2010, e um show de punk dentro de um tribunal em sessão, em 2009.

D*ck Captured by the FSB, 2010

O grupo teve uma vida breve, porém recheada de ações marcantes: como consequência, alguns de seus integrantes se exilaram, outros foram presos e condenados a pagar multas de 10 mil dólares — e várias das membras femininas saíram do coletivo para fundar o famigerado Pussy Riot. Depois de soltos, alguns dos membros anteriormente detidos fugiram do país com passaportes falsificados. A perseguição policial gerou desentendimentos internos no grupo, que se desmantelou, após diferentes integrantes se proclamarem responsáveis por sua continuidade.

O Voiná se autodenominava “arte conceitual” — enquanto a polícia os tinha apenas por baderneiros. De qualquer maneira, seus integrantes proclamam dois dos pais do conceitualismo russo como suas principais influências: Andrêi Monastírski e Dmítri Prígov. A ação da ponte levadiça “Guerra fálica contra o FSB” é, provavelmente a mais famosa do grupo. Em solidariedade aos aprisionados do Voiná, os correios da Noruega chegaram a lançar na época uma tiragem limitada de selos com a imagem da ação. 

Devido à performance “Reviravolta palaciana”, em que tombavam carros da polícia em São Petersburgo, em 2010, dois membros, Leonid Nikolaiev e Oleg Vorotnikov, acabaram presos. Quando viu que a prisão era iminente, o idealizador do grupo, Aleksêi Plutser-Sarno, também fugiu para a Estônia. 

Já na performance “Baratas no tribunal”, o grupo soltou 1,5 mil baratas venezuelanas no tribunal durante o julgamento de Iúri Samodurov e Andrêi Eroféiev, curadores da exposição “Arte proibida”.

Outra performance de grande ressonância foi aquela em que Liônia, um membro do grupo, colocou um balde azul na cabeça para protestar, bem diante do Kremlin, contra os carros de oficiais do governo que, com luzes giroflex, tinham direito de circular por uma faixa central livre das avenidas — á época, uma série de acidentes e atropelamentos eram relacionados ao excesso de velocidade dos destacados cidadãos que usavam essas faixas. 

5. Pussy Riot

Misto de banda punk com coletivo de arte e ativismo político, o Pussy Riot, hoje famoso mundo afora, foi formado em 2011 por garotas feministas ex-integrantes do Voiná. Sua ação mais polêmica foi, sem dúvida, a performance da oração punk "Virgem Maria, livrai-nos de Pútin", dentro da Catedral do Cristo Salvador, em 2012.

Três integrantes do grupo foram presas depois da performance dentro da principal catedral do país, acusadas de incitar ódio religioso, e condenadas a três anos de prisão. A pena foi reduzida para dois anos posteriormente e Ekaterina Samusevitch foi a primeira a ser libertada, após acordo. As outras duas foram libertadas em dezembro de 2013, às vésperas das Olimpíadas de Inverno no país. Nádia Tolokonnikova radicou-se nos EUA e Maria Aliôkhina continuou na terra natal, onde fundou o site de notícias Mediazona. As ações do grupo continuam, porém, com menor ressonância.

6. Piotr Pavlénski

Entre as ações mais polêmicas deste artista-ativista de São Petersburgo estão a performance "Costura" (2012), em que postou-se com a boca costurada em frente à catedral de Kazan, na cidade natal, em apoio ao Pussy Riot enquanto corriam seus julgamentos. 

Em "Carcaça" (2013), foi levado nu por seus assistentes, enrolado em arame farpado, até a porta da Assembleia Legislativa da cidade, em protesto contra uma série de leis aprovadas no país para reprimir o ativismo político e promover a censura e os "valores tradicionais". 

Em "Fixação" (2013), surgiu nu na Praça Vermelha, principal ponto turístico de Moscou — e simbólico pela proximidade com o Kremlin — e fixou os testículos nos paralelepípedos da praça com um prego de 20 centímetros para simbolizar a apatia política do país. A ação ocorreu no Dia da Polícia, em 10 de novembro.

Pavlênski corta a orelha em protesto intitulado

Nas três ações, Pavlênski foi encaminhado pela polícia a hospitais psiquiátricos. Em 19 de outubro de 2014, Pavlênski, sentado no muro do Instituto de Psiquiatria Serbski, em Moscou, cortou com uma faca o lóbulo da orelha direita.

7. Fyodor Pavlov-Andreevich

Na ponte-aérea Brasil-Rússia, o artista já causou frisson em continentes diversos. Em 2016, ele ficou amarrado a um poste no Rio de Janeiro com um cadeado de bicicleta no pescoço para refletir sobre o episódio em que um grupo de justiceiros deixou em semelhante situação um adolescente de 14 anos.

Performance “Monumento Contemporâneo n.6: O Cadeado”, realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 2016.

Devido à performance “Foundling” (em português, “Enjeitado”), por exemplo, ele foi detido e levado a julgamento em Nova York, ao tentar adentrar o Met Gala — a noite anual de angariação de fundos para o Metropolitan Museum — espremido, nu, em uma caixa de vidro fechada com parafusos. O resultado não foi nada acolhedor para uma noite de caridade. 

Ele recorda que o gênero a que se dedica é dos mais ingratos entre todas as formas de arte: “Muita gente acha que essa forma de arte é uma busca do artista em chamar a atenção, mostrar o corpo. Mas tudo o que eu faço hoje só funciona contra mim mesmo. Eu preciso de patrocínio — para a produção, a filmagem das performances etc. No ano da Copa, por exemplo, me telefonaram: ‘você fala português e inglês? Precisamos de você para coapresentar a cerimônia de abertura da Copa, e o Roberto Carlos precisa de um apresentador que fale português.’ Me ofereceram um ótimo pagamento. Fazia tempo que eu não fazia esse tipo de coisa, mas aceitei. Uma semana depois, retornaram: ‘desculpa, meu chapa, o pessoal do comitê de organização botou seu nome no Google e você não se encaixa no perfil”, contou em entrevista à revista russa Snob. 

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