Não é por acaso que o mosteiro é chamado de Lavra da Santíssima Trindade de São Sérgio — ele foi fundado por Sérgio de Rádonej, um monge que viveu no século 14 e que mais tarde se tornou um dos principais santos russos. São Sérgio de Rádonej (também grafado em português como Sérjilo de Radonege, ou Sêrgui Rádonezhski, ou Sergio de Rádonej) nasceu na região da Grande Rostóvia (atual cidade de Rostov Velíki), a 150 km da cidade de Rádonej. A data exata do nascimento do santo é desconhecida, mas acredita-se que ele tenha nascido em 1314. O jovem Sérgio decidiu ser eremita, um destino normalmente escolhido por monges idosos e sábios.
“Reverendo Sérgio de Rádonej. (Bênção)", Serguêi Kirillov, 1992.
Serguêi Kirillov (CC BY-SA 3.0)Junto com seu irmão, ele se estabeleceu em uma densa floresta, construiu uma pequena casa para servir de monastério e uma capela, que foi consagrada em homenagem à Santíssima Trindade.
O irmão não suportou a severidade do ascetismo e da vida solitária e logo deixou Sérgio. Mas, aos poucos, outros monges começaram a se estabelecer ao seu redor. Assim, o ano 1342 é considerado a data de fundação daquele que é hoje o maior e mais famoso mosteiro russo.
Sérgio criou um novo tipo de fraternidade que dava aos leigos um exemplo de comunidade cristã. Os monges eram muito pobres, às vezes ficavam dias sem comida, mas eram muito amigáveis e gentis com todos que os visitavam.
O historiador Vassíli Kliutchévski acredita que Sérgio contribuiu para o início do renascimento moral e político do povo medieval russo. Após a fragmentação da Rússia Antiga e o domínio secular da influência tártaro-mongol, foram Sérgio e o seu mosteiro que se tornaram essencialmente o centro da unificação espiritual do país.
Leia mais sobre a história da vida do santo russo mais venerado aqui.
Nos séculos 13-15, devido às invasões regulares dos tártaros-mongóis, cidades e principados russos inteiros foram saqueados e queimados. Foi nesse ambiente que cresceu o príncipe que conseguiu realizar a primeira campanha militar bem-sucedida contra os tártaros-mongóis — Dmítri Donskói (também conhecido como Demétrio de Moscou, em português).
O príncipe Donskói, também reconhecido como santo, visitava o mosteiro de Sérgio, que aprovava a intenção de reunir forças de todos os principados russos para lutar contra os tártaros-mongóis. Antes da terrível batalha de Culicovo (Kulikovo), Sérgio abençoou Dmítri e enviou consigo dois de seus melhores monges guerreiros: Peresvet e Osliábia.
A vitória do exército russo nesta batalha marcou o início da libertação da Rússia da dominação estrangeira e também da unificação das terras russas sob a liderança de Moscou.
“Defesa do Lavra da Trindade de São Sérgio” (em 1608-1610), por Serguêi Miloradovitch, 1894.
Serguêi Miloradovitch/Museu RussoO Mosteiro de São Sérgio esteve mais de uma vez no epicentro de acontecimentos históricos. Durante a época do primeiro tsar de Toda a Rússia, de Ivan, o Terrível (que, aliás, foi batizado no Lavra no início do século 16), poderosas muralhas foram construídas ao redor do mosteiro, que se tornou uma fortaleza para proteger Moscou do Canato de Kazan. No início do século 17, durante o Tempo das Dificuldades, o mosteiro foi sitiado pelas tropas dos intervencionistas polacos e do impostor Falso Demétrio durante um ano. O mosteiro investiu grandes quantias de dinheiro no apoio às milícias de Mínin e Pojárski na luta pela independência russa.
Já no final do século 17, o imperador Pedro 1º, o Grande, refugiou-se aqui dos seus adversários políticos. Durante o reinado da Isabel da Rússia, no século 18, foram construídas várias novas igrejas em estilo barroco no território do mosteiro. Agora, elas complementam o conjunto da principal Catedral da Trindade do século 15. A imperatriz também concedeu ao mosteiro o estatuto de Lavra, ou seja, o centro espiritual mais importante, um mosteiro com significado especial. Atualmente existem apenas dois Lavras na Rússia, o outro está em São Petersburgo. Leia mais sobre a diferença entre os termos “mosteiro”, “lavra” e “pústin” aqui.
Anteriormente, os monges viajavam pela Rússia e viviam principalmente de esmolas. Mas Sérgio foi o primeiro a mudar esse habitual modo de vida. Os monges eram proibidos de deixar o mosteiro para pedir comida. Quando acabava o alimento, Sérgio e os membros de sua fraternidade apenas oravam pelo “pão de cada dia” e sempre acontecia um acaso que os salvava da fome.
“Por meio de uma solidão prolongada, cheia de trabalho e privação, em uma densa floresta, ele se preparava para se tornar o líder de outros habitantes do deserto”, escreveu o historiador Vassíli Kliutchévski.
Monge nos arredores do Lavra da Trindade de São Sérgio.
Ramil Sitdikov/SputnikEle tomava sob sua proteção os novos monges que chegavam ao mosteiro, ensinava boas maneiras, observava cuidadosamente para que orassem com fervor e não sucumbissem às tentações da vida mundana. Todos, inclusive o próprio Sérgio, tinham uma rotina diária rígida e trabalhavam incansavelmente: construíam igrejas, cozinhavam, cortavam lenha e costuravam roupas.
Sérgio criou um novo tipo de fraternidade que dava aos leigos um exemplo de comunidade cristã.
Desde o século 15, Sérgio é reverenciado na Rússia pelo ascetismo monástico, como um santo disfarçado de reverendo, ou seja, como um monge que, por meio de orações, jejuns e trabalhos, se esforçou para ser como Jesus Cristo. Atualmente, Sérgio é reverenciado como um santo pela Igreja Ortodoxa, pela Igreja Católica e pelos Velhos Crentes.
A história do ícone mais importante da Igreja Ortodoxa Russa está inextricavelmente ligada ao Lavra da Trindade de São Sérgio.
A primeira capela do futuro mosteiro foi dedicada especificamente ao ícone “A Trindade”, criado por Andrei Rubliov. Posteriormente, todo o mosteiro recebeu o nome da Trindade devido a ele. Acredita-se que “A Trindade” tenha sido pintada na primeira metade do século 15, entre 1422 e 1427, segundo especialistas da Galeria Tretiakov, em Moscou.
“A Trindade”, de Andrei Rubliov.
Andrêi RubliovDiz-se ainda que Nikon, discípulo de Sérgio de Rádonej e segundo abade do mosteiro, pediu a Rubliov que pintasse uma imagem da Santíssima Trindade “em louvor a seu pai, Sérgio” para a então recém-construída Catedral da Trindade do mosteiro.
O ícone mede 141,5 x 114 cm, e é pintado em têmpera de ovo sobre tábua de madeira. Tornou-se um dos objetos sagrados mais venerados do mosteiro (além das relíquias de Sérgio de Rádonej) e ficava exibido na iconostase da Catedral da Trindade, à direita das Portas Reais que conduzem ao altar.
Andrei Rubliov foi o primeiro pintor de ícones a entender e retratar a Triunidade de uma maneira diferente. Sua representação da Trindade foi verdadeiramente genial e ajudou a compreender essa difícil doutrina.
A partir daí, a iconografia ortodoxa russa passou a usar a concepção de Rubliov como referência para representar a Santíssima Trindade. Os conselhos da Igreja também recomendavam aderir a essa interpretação.
Em 1929, o governo soviético transferiu o ícone para a Galeria Tretiakov, onde foi mantido em condições especiais durante muitos anos, enquanto o mosteiro recebeu uma cópia do ícone.
Em 2023, por decisão do presidente russo Vladimir Putin, o ícone foi transferido de volta para a Igreja Ortodoxa Russa e devolvido ao Lavra da Trindade de São Sérgio.
Leia mais sobre o que torna esse ícone tão único aqui.
Ao contrário de outras igrejas e mosteiros russos, que foram fechados e destruídos pelo comunistas, o Lavra não foi danificado. Nenhum dos edifícios antigos foi completamente destruído. Em 1919, o mosteiro foi fechado, vários objetos de valor da Igreja acabaram sendo confiscados e derretidos, incluindo o Sino do Tsar (que foi restaurado na década de 2000).
Mas até mesmo o poder soviético percebia que esse mosteiro tinha valor histórico único. Em vez de destruir o complexo do mosteiro, o governo decidiu abrir um museu histórico e arquitetônico dentro de suas muralhas. Ao longo de todo o século 20, o mosteiro foi sendo restaurado. Além disso, uma escola de restauradores inaugurou dentro do mosteiro.
Catedral da Assunção e Igreja Espiritual (à esquerda).
L. Nossov/SputnikNa década de 1940, Stálin suavizou a sua política em relação à Igreja, reabilitando essencialmente a Ortodoxia na URSS. A vida monástica foi revivida no Lavra, e o Patriarca Aleixo 1º se tornou o primeiro abade.
O Lavra da Trindade de São Sérgio se tornou uma espécie de vitrine da Ortodoxia para estrangeiros na URSS. Todas as delegações estrangeiras e turistas visitavam esse lugar para conhecer “algo exótico”. Embora os serviços religiosos tenham sido retomados, a vida do mosteiro permaneceu sob controle total do Estado até o desmantelamento da URSS.
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