Comidas e bebidas que os aristocratas russos consideravam “indecentes”

Comida
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Por que era uma vergonha comer nozes? E por que se misturava champanhe francês com o kvass, bebida russa feita de pão? Eis as loucuras da etiqueta inventadas pela aristocracia no Império Russo.

"Você é o que você come." Esta frase de Hipócrates tornou-se um aforismo e se referia à saúde, mas, para o Império Russo dos séculos 18 e 19, significava algo completamente diferente. O que se comia (pelo menos publicamente) determinava a classe social de alguém.

Enquanto os camponeses simplesmente não podiam arcar com a “alta cozinha” e produtos estrangeiros, a classe alta tinha que excluir deliberadamente toda uma gama de alimentos, pratos e bebidas de suas vidas por serem considerados “indecentes”.

Paradoxalmente, entre a aristocracia russa essas comidas indecentes, durante 150 anos, eram, principalmente os pratos da cozinha russa. Quem nãos os excluía do cardápio era considerado avarento ou vulgar (dependendo do contexto).

Assim, por exemplo, o famoso líder militar russo Conde Aleksandr Suvorov, que até mesmo quando era convidado a um jantar levava seu chef pessoal que servia pratos da cozinha russa de uma panela, tinha a reputação de ser aberração na corte.

Nozes desprezíveis, caldo verde "ruim"

O desprezo pela cozinha russa surgiu durante o reinado de Pedro, o Grande, juntamente com uma tendência de valorizar tudo o que era europeu: de vestidos até fogões.

No governo de Catarina, a Grande, todo nobre que se respeitasse tinha que empregar um chef francês na cozinha. O Conde Chuvalov, por exemplo, certa vez pediu um prato russo para o jantar - um ganso assado - e ficou muito impressionado quando seu cozinheiro francês respondeu: “Servir o ganso frito?! Não, é melhor você me mandar de volta para a França!”, exclamou.

Pouco a pouco, os pratos franceses começaram a se misturar com os de outras cozinhas europeias - a cada década a aristocracia russa descobria um prato novo de um país europeu. Até a truta ou o bacalhau foram levados do exterior para a mesa russa.

Mas a etiqueta do século 18 e do início do século 19 ainda não permitia que as chamadas refeições "camponesas" fossem servidas nos almoços e jantares dos nobres: mingau, kvass, sbiten (uma bebida quente feita de mel) e, acima de tudo, caldo verde “schi” com repolho azedo (todas as refeições feitas com o repolho branco comum eram consideradas impróprias).

O pão de centeio também entrou para a lista negra. Aos poucos, ele foi sendo chamado de pão preto, pois era o pão da nobreza. Os aristocratas tinham direito ao "pão francês" - pão de trigo branco.

Nozes e cerveja também eram desprezados. "Eles servem nozes, bebem cerveja no teatro", escreveu o poeta Aleksandr Púchkin, zombando, sobre os aristocratas "servis" da alta sociedade.

No tempo de Púchkin, nozes e cerveja eram sinais de um homem vulgar e mal-educado. Isto só se aplicava às nozes em sua forma inteira, não processada, pois elas são recém-colhidas na floresta. O mesmo era válido para as sementes de girassol.

Esses alimentos eram considerados grosseiros, destinados ao gado. Se, no entanto, as mesmas nozes também fossem moídas em migalhas pelo mesmo chef francês e polvilhadas na sobremesa, elas podiam ser reabilitadas.

Quanto à cerveja, seu consumo não era permitido para as mulheres na época e a cerveja local era considerada “plebeia” pelos homens. Havia boas razões para isso: via de regra, a cerveja produzida em algum lugar nas proximidades de São Petersburgo era amarga e azedava rapidamente. Os aristocratas pediam cerveja de barril inglesa, mas a bebiam em companhia masculina e certamente não no teatro.

É interessante que todos os tipos de pratos de carne, peixe e aves servidos com caldos cozidos eram chamados de molho no século 19. Servir molho aos convidados também era algo um pouco complicado. Sobre Matvei Solntsev, um parente de Púchkin de Moscou, teriam dito o seguinte depois de ele servir "algum tipo de molho de peru" em um jantar a seus amigos, entre eles o Príncipe Volkonski: "Pomposo e vaidoso, Solntsev era além de tudo muito mesquinho".

A cozinha russa chegou às classes altas após a guerra com a França, em 1812, quando o patriotismo entrou na moda. Naquela época, o kvass russo (até então uma bebida camponesa "ruim" feita de pão fermentado) começou a ser apreciado nos salões da alta sociedade e a culinária russa voltou às boas mesas - embora ainda não muito.  

Todos cumpriam essas regras?

De fato, até mesmo Catarina, a Grande tinha uma paixão por pepinos em conserva (outro produto “vil”), segundo escreveram diplomatas estrangeiros. E nem todos os nobres podiam bancar um chef francês ou alimentos estrangeiros diariamente.

O quadro "O café da manhã de um aristocrata", de Pavel Fedotov, é indicativo: seu título original era "Fora de sintonia": ele mostra um aristocrata assustado que não esperava visitantes e, por isso, escondeu, envergonhado, sua fatia de pão de centeio murcha. Esses nobres empobrecidos foram um fenômeno de massa no século 19, até mesmo na capital russa.

Além disso, todos comiam alimentos "baixos" em segredo, mesmo aqueles que tinham os meios para fugir deles. A etiqueta obrigava a excluí-los, parcial ou integralmente, na sociedade ou na presença de convidados, dependendo do contexto: quanto mais formal fosse a refeição, mais espaço era dado à cozinha francesa.

Alguns nobres seguiam essa regra de etiqueta compulsoriamente, como Lev Tolstói tão vividamente descreveu em Anna Karênina. Quando Oblônski convida o Levin para um restaurante, eles pedem ostras francesas, préntinière francês (sopa de legumes e nabo), peixe “turbot” com molho grosso, rosbife e galo.

Levin teria preferido seu amado caldo ou mingau, mas ele tem que comer pratos franceses. Aliás, também havia mingau nos cardápios dos restaurantes, mas ele era chamado de "mingau à la rousse" à maneira francesa, para que soasse mais respeitável. Quase todos os pratos russos eram renomeados de maneira semelhante em francês se estivessem no cardápio.

A alimentação como protesto

Foi no século 19 que os alimentos "vergonhosos" se tornaram um símbolo da oposição, em alguns casos. Entre os aristocratas cujas opiniões políticas estavam em desacordo com o curso geral do Estado, um prato "baixo" podia ser servido no jantar, na presença de pessoas de mentalidade semelhante — isso era um gesto de protesto contra o esnobismo secular.

Assim, o dezembrista Kondrati Rileiev oferecia a outros opositores repolho e pão de centeio nas reuniões secretas em sua casa (ele os chamava de "café da manhã russo"). Eles bebiam, porém, vodca legítima, ao invés da vergonhosa cerveja.

Os primeiros eslavos dos anos 1830 e 1840 também faziam refeições “demonstrativas” em suas reuniões: misturaram kvass russo e champagne francês em um grande púcaro de prata e bebiam a mistura resultante como sinal de seu compromisso com o povo.

A divisão dos alimentos em "decentes" e "indecentes" começou a desaparecer na segunda metade do século 19. A "gurievskaia kacha” (mingau de semolina doce com todos os tipos de coberturas) tornou-se um dos pratos favoritos de Alexandre 3°, a influência francesa sobre os aristocratas russos enfraqueceu e a cozinha russa cada vez mais afirmava sua posição.

 

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