Para um nobre russo do século 19, a honra estava acima de tudo. Qualquer insulto levava instantaneamente a um duelo. Na época do mais famoso poeta russo, Aleksandr Púchkin, ou seja, o início do século 19, os duelos eram tão frequentes que o governo começou a ficar muito preocupado com o número de jovens nobres mortos em duelos. Nem mesmo a ameaça de exílio na Sibéria detinha os duelistas.
A tradição dos duelos chegou à Rússia, proveniente da Europa, apenas no século 17 — justamente a época em que a prática decaía no local de origem, entre os séculos 16 e 17. No reino de Moscou, naquela época, o duelo era visto como selvageria.
O francês Jacques Margeret, que serviu na Rússia durante o reinado de Boris Godunov, escreveu: "Entre os russos não há duelos. Em primeiro lugar, porque eles sempre andam desarmados, à exceção dos tempos de guerra ou viagens; em segundo lugar, porque quem é ofendido por palavras ou de outra forma recorre ao tribunal, que determina a punição ao culpado, o que se chama desonra."
Par de pistolas do último quarto do século 17.
Museus do Kremlin de MoscouSegundo Margeret, essa ordem se explicava pela severidade da legislação: a resolução independente de disputas por duelos não era permitida para que os russos não se apropriassem "do poder da justiça, que tem o direito de resolver e processar crimes".
Esta ordem foi preservada na Rússia ao longo do século 17, enquanto os europeus já estavam resolvendo disputas com força e espadas. O diplomata Piotr Tolstói, que partiu para a Europa em 1697 para estudar assuntos marítimos, testemunhou um duelo entre nobres poloneses e ficou chocado. “Os poloneses são como gado, eles não podem fazer nenhum negócio de Estado sem luta e sem batalhas, e para isso eles vão a um ‘campo’ para matar e morrer sem pensar”, escreveu Tolstói com desprezo.
Tolstói entendia que o assunto do duelo estava ligado à questão da honra, já que usava a palavra "campo". Assim era chamado um tipo duelo na Rússia que era anunciado se o requerente e o réu não pudessem chegar a um acordo, e não houvesse testemunhas que pudessem apoiar um lado ou outro.
A tradição do "campo" na Rússia é muito antiga. Ainda no século 10, o historiador árabe Shamsuddin al-Muqaddasi escreveu: “Quando o rei resolve uma disputa entre dois litigantes e eles permanecem insatisfeitos com sua decisão, ele diz: lidem com suas espadas, e a mais afiada levará à vitória."
Espada holandesa do final do século 17.
Museus do Kremlin de MoscouOs russos quase sempre preferiam resolver disputas complexas no "campo", já que era preciso pagar uma taxa pelo julgamento e a pessoa podia lutar por conta própria — ou, se houvesse uma clara desigualdade entre os rivais, contratar um mercenário.
Na maioria dos casos, os mercenários representavam no "campo" os idosos, defecientes, menores de idade, mulheres e clérigos. No entanto, se uma mulher disputasse contra outra mulher, mercenários eram proibidos.
O primeiro duelo na Rússia
O auge dos "campos" na Rússia ocorreu no século 16, quando o governo de Moscou chegou até mesmo a alocar um lugar especial para duelos no centro da cidade. No entanto, no século 17, a tradição dos "campos" começou a desaparecer, e o novo código legal russo, o "Sobórnoie Ulojénie", de 1649, não menciona essa possibilidade de resolver disputas. O primeiro duelo na Rússia, porém, ocorreu antes da adoção do novo código em 1637, e foi uma batalha entre dois estrangeiros.
"A Esgrima de Francesco Fernando Alfieri."
Domínio públicoO motivo do primeiro duelo em Moscou, segundo o pesquisador Aleksandr Sávinov, foi uma dívida e a embriaguez. Em 6 de junho de 1637, o sargento alemão Thomas Grels foi ao pátio de um alemão que serviu na Rússia, o sargento Peter Falk. Ele exigia o pagamento de uma dívida de dois rublos por uma carabina. Grels estava bêbado e bateu na cabeça de Falk com o punho de uma espada: de acordo com a tradição europeia da época, esse golpe significava um desafio para um duelo.
Segundo testemunhou a esposa de Falk, Anna, eles começaram a falar palavrões e fazer barulho, e saíram pelo portão. Não houve testemunhas do duelo, mas, mais tarde, Grels foi encontrado morto sobre uma poça de sangue.
De acordo com as leis da época, a morte em duelo era equiparada ao assassinato. Falk declarou que o próprio Grels "correu" e “se chocou" com o fio de sua espada. A investigação durou quase três anos e, embora a culpa direta de Falk não tenha sido provada, ele morreu na prisão.
"Duelo com Espada e Adaga", Jacques Callot , 1617.
Metropolitan Museum of Art / Domínio públicoNa segunda metade do século 17, duelos entre estrangeiros na Rússia passaram a ocorrer com mais frequência. Em 1665, ocorreu um duelo entre o capitão alemão Christopher Ulman e o capitão escocês Smith. O motivo foi uma dívida em bebida alcoólica. Ulman, tentando apresentar o duelo como autodefesa, testemunhou que Smith caiu na ponta de sua espada. A sociedade escocesa em Moscou, chefiada pelo general Patrick Gordon, talvez o estrangeiro mais influente no serviço russo, foi ao tribunal para apoiar o capitão escocês morto, Smith. Ulman, inicialmente condenado à decapitação, foi deixado vivo, mas sem as pernas e o braço esquerdo.
"Preconceitos alheios"
Segundo o francês Jacques Margeret, o próprio conceito de duelo era estranho para os russos. “Os russos não se apegam a palavras, eles são muito simples, tratam todo o mundo por ‘tu’, e antes eram ainda mais simples [...] Agora, que há mais estrangeiros aqui, os russos estão ficando mais polidos", escreveu Margaret.
Patrick Gordon.
Domínio públicoA política do primeiro imperador russo Pedro, o Grande, que incluía a educação da população, proibição de palavrões e obrigatoriedade de imitar alguns hábitos estrangeiros (como, por exemplo, nas vestimentas e no barbear), levou ao primeiro duelo entre russos, que ocorreu em 1702.
Em uma assembleias, Ivan Schepotiev, sargento do regimento Preobrajénski, empurrou um tenente do mesmo regimento, Semion Izmailov. A briga iniciada ali levou ao duelo. Ambos os adversários sobreviveram com ferimentos leves, mas o tsar ficou furioso ao saber do duelo. Ele ordenou que ambos fossem “espancados com chicotes, para isso não ser habitual para os outros" e rebaixou ambos os oficiais para soldados.
Ao contrário das tradições europeias, os duelos, segundo o tsar Pedro, não deviam se tornar comuns na Rússia, porque a vida de um militar pertencia a sua pátria. Em 1715, em seu Código Militar, Pedro ordenava que todos os duelistas fossem executados. No entanto, a severidade da lei foi compensada pela opcionalidade de sua implementação — não existem dados sobre casos reais de pena de morte por duelo.
Os duelos europeus passaram a acontecer na Rússia apenas no final do século 18, quando jovens nobres começaram a viajar para estudar na Europa e popularizaram o conceito de “honra” na Rússia. A opinião da população sobre a tradição do duelo, porém, permaneceu ambígua.
“Preconceitos não recebidos de ancestrais, mas adotados e superficiais, alheios”, escreveu sobre os duelos a imperatriz Catarina, a Grande, que, obviamente, não estava interessada na destruição da classe nobre. Em 1787, foi publicado o “Manifesto sobre duelos”, segundo o qual os participantes de um duelo sem sangue (incluindo médicos e terceiros) seriam punidos com multas, e o infrator (instigador do duelo) seria exilado para a Sibéria.
No final do século 19, no entanto, o duelo tornou-se bastante comum na Rússia. Foram publicados diversos códigos para duelos, e os próprios duelos se transformaram em uma espécie de show sangrento, com espectadores e fotógrafos.
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