Kvass, o "pão engarrafado" que se tornou um elo de ligação nacional russo

Kira Lissítskaia (Foto: Legion Media; Sputnik)
Quem inventou o kvass? Qual é a ligação entre essa bebida e o patriotismo? Por que todo champanhe na corte do tsar foi substituído por kvass e o que arruinou com sua popularidade?

Você não imagina quantas variedades de kvass os russos já inventaram! Doce, azedo, mentolado, com passas, maçã, pera, mel, pimenta, raiz-forte, espesso, ralo, especial para soldados... Verdade é que eles tiveram pelo menos 10 séculos para criar todas essas variedades, mas, no início do século 19, já havia mais de mil receitas. O kvass é uma bebida fermentada feita de farinha e malte ou pão de centeio e se tornou uma espécie de elo de ligação nacional, tendo importante papel na política. Mas vamos por partes.

Quem inventou o kvass?

Não se sabe ao certo quando a principal bebida fria do país surgiu na Rússia. Provavelmente, ela sequer foi inventada pelos russos. Algo parecido com kvass existia na Grécia Antiga e no Egito Antigo. No século 5 antes de Cristo, Heródoto mencionou uma bebida chamada Zifos: era feita com cascas de pão umedecidas e a fermentação resultante produzia uma bebida semelhante ao kvass.

Assim, ao que tudo indica, o kvass era feito por todo o lado. Mas, devido a vários fatores — disponibilidade de ingredientes e condições climáticas, principalmente — ele se popularizou na Rássia. A primeira menção escrita ao kvass na Rússia pode ser encontrada em uma crônica de 996: por ordem do Príncipe Vladímir, os cristãos recém-convertidos recebiam “comida, mel e kvass”. Com o decorrer do tempo, bebidas fermentadas desse tipo se transformaram em outras coisas em países diversos (por exemplo, a cerveja), mas o kvass persistiu na russa em sua forma original (ou melhor, suas milhares de formas). O mais interessante dessa história, porém, é como o kvass passou a ser uma “bebida nacional”.

Quem bebia kvass e por que bebiam tanto?

Venda de kvass.

O kvass era uma bebida consumida por todos: camponeses, soldados, médicos, monges, tsares. Cada família tinha sua própria receita — daí a grande variedade. Nesse aspecto, ele se assemelha ao borsch: as linhas gerais para fazê-lo são as mesmas, mas cada um tem suas nuances. E o kvass dá espaço para experimentos: tanto em quantidades e tipos de ingredientes, como no processo de preparo.

Por exemplo, para preparar o mosto (que é feito com pão ou farinha e água que são deixados em repouso para fermentar), pode-se usar água fria ou quente — e o resultado depende da escolha entre as duas. Ou o tempo de permanência do mosto no forno ou nas cubas também varia. Finalmente, os barris onde o kvass fermenta podem ser tratados com açúcar, lúpulo, hortelã, passas, mel etc.

Na Rus, o kvass era uma bebida do dia a dia, assim como o chá na atualidade. “O kvass, como o pão, nunca enjoa”, diz um provérbio russo. Além disso, o kvass era considerado um alimento cheio de “substância”, por isso o verbo usado com ele era “comer”, e não “beber”. Em tempos de fome, era de kvass que os trabalhadores se alimentavam, levando-no consigo para o campo ou para outros trabalhos pesados. Embora líquido, ele dava sensação de satisfazer a fome. Ele também servia de base para dezenas de pratos diferentes: desde a “okrôchka” (um tipo de salada) até a “tiuria” com cebolinha (sopa de crosta de pão).

Kvass mentolado caseiro.

A partir do século 12, surgiram dois ramos principais de kvass: a bebida azeda com baixo teor de álcool e a altamente alcoólica. A última era chamada de tvorionni, ou seja, fermentada com cozimento, e não naturalmente. Se o kvass não for cozido, a fermentação natural interrompe a fermentação alcoólica e a bebida resultante tem menos de 1% ou 2% de álcool, enquanto a variante “tvorionni” tem o mesmo volume de álcool que o vinho. É por isso que o kvass também era apreciado: por sua capacidade de se transformar em bebida alcoólica.

Surgiu daí uma profissão à parte: a do kvasnik, que fazia o kvass. Cada kvasnik se especializava em certa variedade da bebida e era chamado por sua especialidade (kvasnik de maçã, kvasnik de cevada etc.). Cada kvasnik trabalhava em sua própria vizinhança, e aventurar-se fora dela podia ser um verdadeiro problema: havia uma divisão clara de território entre os kvasniks, o que ajudava a lidar com a acirrada concorrência.

Mas há outra hipótese sobre o porque o kvass era tão popular. “A razão era simples: não havia água potável. Quanto mais gente em um local, mais agudo o problema se tornava, causando epidemias e surtos em massa. Já as bebidas fermentadas (como, por exemplo, o kvass ou a cidra) eram consideradas seguras do ponto de vista sanitário ”, diz o historiador da culinária russa Pavel Siutkin.

Talismã antigo e ligação com o patriotismo

Vendedor russo de kvass.

Mas o kvass era valorizado não só por prevenir de epidemias. Ele era tão popular que adquiriu propriedades sagradas e místicas e se tornou um talismã. As moças derramavam kvass nos bancos da casa de banhos durante a cerimônia de lavagem antes do casamento (e bebiam o resto), enquanto os homens usavam o kvass para apagar incêndios causados ​​por raios, pois acreditavam que apenas kvass ou leite podiam parar essa “fúria divina”, de duas formas: ou eles jogavam um arco de barril kvass no fogo para evitar que ele se espalhasse ou jogavam o próprio kvass no fogo para apagá-lo.

No palácio, a crença no poder do kvass também era grande — mas principalmente em relação à saúde. A palavra kvass deriva do mesmo radical da antiga palavra russa para "ácido", e considerava-se que o ácido láctico tinha um efeito benéfico no corpo. O comandante militar Aleksandr Suvorov amava kvass e o tsar Pedro, o Grande, o bebia todos os dias. O príncipe Mikhail Golitsin, que foi rebaixado ao posto de bobo da corte, ganhou o apelido de kvasnik: suas funções incluíam servir kvass para a imperatriz Anna Ioannovna.

A popularidade do kvass teve seu auge após a guerra com Napoleão, em 1812, quando a nobreza russa começou a demonstrar seu patriotismo através da bebida. “Por uma questão de urgência, o champanhe foi substituído pelo kvass, que era servido nos bailes em taças de cristal”, conta Pavel Siutkin.

Inevitavelmente, essa russofilia oficial logo se tornou objeto de escárnio: assim foi cunhada a expressão “patriotismo kvass”. Acredita-se que seu autor seja o príncipe Viázemski, crítico literário e amigo próximo de Aleksandr Púchkin, que em suas Cartas de Paris (1827) escreveu: “Muitos consideram o patriotismo um elogio incondicional a tudo que vem de seu próprio país. Turgot chamou isso de patriotismo servil, du patriotisme d'antichambre. Poderíamos chamá-lo de patriotismo kvass.”

Bebida “vulgar”

A partir do início do século 19, o kvass começou a perder prestígio, passando a ser considerado parte da dieta dita “vulgar” pela aristocracia. Mas ele continuou a gozar de popularidade entre os funcionários públicos mais jovens, mercadores, membros da classe média e camponeses.

Sobre isso, o médico de Catarina, a Grande, escreveu em 1807: “O médico mais antigo, dr. Rogerson, um dos favoritos de Catarina, a Grande, acha que, do ponto de vista da higiene, o chucrute, os pepinos em conserva e o kvass são excelentes para as pessoas comuns de São Petersburgo e as protegem de várias doenças que podem se desenvolver sob a influência do clima local e seu modo de vida desmedido”.

Com o início da industrialização, em meados do século, a fabricação de kvass tornou-se menos difundida, mesmo nas casas simples. Em uma tentativa de preservar o kvass como patrimônio nacional, a Sociedade Russa para a Proteção da Saúde Pública patrocinou a bebida e começou a produzi-la em hospitais. Naquela época, já fazia um século que o kvass hospitalar fazia parte da ração obrigatória para militares do Exército e da Marinha e prisioneiros. Onde havia um regimento, havia uma enfermaria, e onde havia uma enfermaria, havia também uma câmara fria com kvass. Se faltasse kvass, o problema era relatado à chefia, com a exigência de alocar fundos imediatamente para a compra de malte.

No entanto, um grande revés ocorreu com o kvass em 1905, quando enfermarias e hospitais do regimento o substituíram por chá. O principal motivo era que o kvass era muito mais difícil de preparar e armazenar durante a marcha. A partir de então, o kvass deixou de ser a bebida essencial do povo russo para se tornar simplesmente uma das favoritas. Nos tempos soviéticos, ele passou a ser armazenado não em barris de madeira, mas garrafas metálicas amarelas que estavam por toda a cidade desde o início do calor até o outono.

Na Rússia pós-soviética, o kvass também passou a ser vendido em garrafas. Hoje, pode-se encontrar kvass engarrafado em todos os mercados. Aliás, as tradicionais barricas amarelas também permanecem. O kvass delas é preparado utilizando-se uma receita padrão e não tem mais uma infinidade de sabores, mas, apesar de “comum”, também tem seus fãs leais.

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