O que o povo soviético comia?

1988

1988

Vladimir Semenov/TASS
Moradores de diferentes partes da Rússia lembram o que havia disponível nos mercados da época – e o que exigia horas de fila ou até uma árdua viagem a Moscou.

Para muitos, os anos finais da URSS estão associados a filas intermináveis ​​de alguns produtos aleatórios que haviam sido subitamente colocados à venda em um mercado próximo, e as prateleiras das lojas vazias, além da infinidade de peixes enlatados. Mas outros têm boas lembranças de pão quente, leite com prazo de validade de apenas alguns dias, bolos com creme feito de manteiga de verdade, que até crianças em idade escolar podiam pagar, e festas familiares generosas. O Russia Beyond perguntou aos russos que viveram na época como era, de fato, a situação alimentar em suas cidades.

Variedade a partir de nada

Na fazenda agrícola corporativa central de Perm, 1989

“O café da manhã geralmente consistia em mingau de sêmola; o almoço era em casa, geralmente uma sopa instantânea, assim como o jantar. Salsichas e queijo eram raridade. Comíamos carne uma ou duas vezes por semana. Havia grande variedade de massas e aletria, embora de baixa qualidade”, diz Aleksêi Karamazov, de Iakutsk.

A maioria dos alimentos foi trazida para Iakutsk, na Sibéria, a partir de outras partes do país, com exceção de pão e leite. “O leite era fresco, vendido em grandes barris amarelos. O pão também era local: havia uma grande fábrica de pão em nossa cidade”, relembra Karamazov. Quanto às frutas e verduras, só podiam ser compradas na estação. “Iakutsk também tinha um mercado onde se podia comprar praticamente tudo, mas os preços não eram aqueles que uma pessoa comum podia pagar.”

Loja Okolitsa, em Perm

“Não morríamos de fome”, diz Olga Bojedomova, de Khabarovsk, no Extremo Oriente. “Meu pai saía para caçar e pescar, então sempre tínhamos carne e peixe. O que não se pode dizer dos mercados, talvez apenas com exceção das centrais.”

A família de Olga colhia frutas e legumes da datcha (casa de campo), onde os cultivavam e depois faziam conservas para o inverno. “Os mercados vendiam batatas, cenouras, beterrabas e repolho, que estragariam um pouco até o fim do inverno.”

“Meu pai costumava dizer: nossa comida é schi [sopa de repolho] e mingau [este provérbio russo significa simplicidadena comida]”, lembra Natália Netchaeva, natural de Perm, nos Urais. “Em um dia comum, tínhamos chucrute – nós fazíamos baldes em casa – e batatas, nossa mãe também trazia costeletas da cantina da fábrica; era difícil conseguir carne, assim como salsichas.”

Preparando banquete de Ano Novo, em Moscou, 1971

Perm também possuía um mercado onde tudo era vendido a preços exorbitantes, lembra Natália, embora fosse “sempre possível” comprar pão e leite. “Era uma verdadeira alegria quando eles distribuíam pacotes de alimentos na fábrica. Além do frango, que sempre estava em demanda, e uma lata de leite condensado, também recebíamos dois quilos de açúcar”, conta. Carne e peixe eram preparados de modo a durar mais tempo, como almôndegas ou bolinhos. “Quem conseguia maionese e espadilhas [tipo de peixe], costumava guardá-las para as festas.”

Quanto aos bolos, as pessoas geralmente os faziam em casa ou iam buscá-los em Moscou, onde era possível comprar tudo e a preços mais acessíveis também.

Cinturões de preço

Durante o período conhecido como “estagnação”, diversas cidades soviéticas vivenciaram uma escassez de bens essenciais, de carne a veículos – o que foi causado, em grande parte, pelas deficiências da economia planejada.

No entanto, esse não foi o caso em todas as localidades.

“Em 1986 e 1987 morei em Moscou e, quando voltei para casa para ver meus pais, trouxe café, salsicha, queijo, Pepsi e Fanta. Moscou tinha de tudo”, diz Natália.

Doceria em Moscou, 1987

A URSS tinha um sistema de “categorias de suprimentos”: fosse especial, primeira, segunda e terceira. As categorias especiais e primeiras incluíam Moscou e Leningrado (atual São Petersburgo), as capitais das repúblicas soviéticas e cidades ‘fechadas’; a segunda categoria cobria a maior parte do território da URSS; enquanto a terceira era destinada ao Extremo Norte (Iakútia, Tchukotka, região de Murmansk e outras).

Além disso, os alimentos recebiam “preços por zona”, que, entre outras coisas, dependiam dos custos de transporte. Por exemplo, na primeira zona, um pacote de cubos de açúcar custava 94 copeques (US$ 1,3 naquela época); na segunda, 1 rublo e 4 copeques (US$ 1,4); e na terceira, 1 rublo e 14 copeques (US$ 1,6).

Não é surpresa alguma que os moradores de outras cidades viajassem com frequência a Moscou e Leningrado em busca de linguiça, carne e queijo, e as pessoas carregavam sacos e malas cheios de alimentos escassos.

Havia muitas piadas sobre os chamados “trens de salsicha”. Em um delas, o presidente norte-americano perguntava a Brejnev: “Como você consegue entregar comida para um país tão grande?”; e o líder soviético respondia: “É bem simples: levamos tudo para Moscou, e de lá as pessoas transportam tudo por conta própria”.

Natalia lembra que a família também tinham parentes vivendo em um complexo militar perto de Vladivostok, no Extremo Oriente, que todos os anos enviavam caviar vermelho e peixe para Perm.

Já Olga recorda que em Khabarovsk as pessoas tinham que fazer fila para obter produtos lácteos: “Em 1984, quando fui de férias para o Báltico com meus pais, comi sírniki [panquecas de queijo tipo cottage] com creme de leite azedo na cantina durante o mês todo em que estivemos lá, eles tinham em grande quantidade”.

Novokuznetsk, na Sibéria, 1987

O doce sabor da infância

Paralelamente, todos se lembram que, embora chocolate fosse escasso, conseguir algo doce não era um grande problema. “Doces e bolos eram trazidos de viagens de negócios a Moscou e Leningrado”, recorda Olga. “Quanto aos sorvetes, sempre havia grande variedade, todos muito gostosos. Também me lembro das máquinas de venda automática nas ruas vendendo refrigerante, com e sem xarope.”

“Os mercados de Perm vendiam doces fabricados em Moscou e em uma fábrica de chocolate local”, diz Natália. “O que costumava se ver nas vitrines das lojas eram balas e caramelos, então, quando os bombons apareciam, estávamos na Lua.”

Doces produzidos na fábrica da Moldávia soviética

Com o início da campanha antiálcool, entre 1985e 1987, começou a faltar açúcar, assim como as balas nas prateleiras, “pois as pessoas os usavam para fazer cerveja em casa”, lembra Aleksêi. “Mas era possível comprar geleia por 3 copeques (US$ 0,04), além de sorvete a 20 copeques (US$ 0,3) por 100 gramas. Hoje em dia, você pode ter tudo o que deseja em Iakutsk, o ano todo, para qualquer gosto e bolso. Mas, na minha opinião, o sorvete soviético ainda tinha um sabor melhor”, conclui.

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