“Estas bebidas ainda são fáceis e baratas e, amigos, elas estão disponíveis durante o ano todo.” É assim que começa curta-metragem soviético Moonshiners, de Leonid Gadau. “Moonshine” é o termo em inglês usado para definir bebidas destiladas de alto teor alcoólico e que, na maioria das vezes, são ilícitas. Na União Soviética não era diferente: produzir álcool em casa era proibido, mas mesmo assim muitas pessoas o faziam, especialmente no interior do país. E ainda hoje há quem o faça.
Como os moonshine criaram raízes na Rússia?
Não há uma data precisa que marque o início do consumo de bebidas alcoólicas caseiras na Rússia, conhecidas no país pelo nome de samogon, que literalmente quer dizer “destilado caseiro”. Eram produtos que não eram vendidos em lojas e muito raramente estavam disponíveis em bares. “Uma vez nos ofereceram uma dose em um bar de bebidas artesanais”, diz Maxim, de Moscou. “Outra vez um colega trouxe um destilado de peras e maçãs”. Verdade seja dita, o risco de intoxicação é um dos motivos pelos quais as pessoas nem provam essas bebidas.
“Uns dez anos atrás eu estava visitando alguém que tinha um amigo no vilarejo que fazia dessas bebidas”, lembra Daria, também de Moscou. “O gosto era horrível. Tive uma ressaca enorme e ainda tenho esse branco na minha memória, pois o mal-estar só passou três dias depois”.
Depois deste incidente, Daria parou de beber completamente, embora ela não descarte a possibilidade de que aquela era uma bebida de muita baixa qualidade mesmo. Por outro lado, Iulia, de Nizhni Nóvgorod acha que é tudo são uma questão de gosto. Ela também não gosta dos destilados caseiros, mas todos na sua família fazem. Ela explica que é como um hobby: “As pessoas fazem isso em quase todas as partes do mundo.”
Ela tem razão. Na maior parte dos países falantes de língua inglesa as bebidas são conhecidas por moonshine, na Irlanda por poitín, na Hungria por palinka e na in Alemanha por Schwarzgebranntes — só para dar exemplos de alguns casos. Sob o governo de Catherine II, por exemplo, fazer destilados caseiros era permitido na Rússia, mas também era muito caro, então só os nobres o faziam. O resto precisava ter licença para comércilizar para que valesse a pena fazê-los. Os camponeses da época tomavam drinques feitos com bebidas não destiladas e de baixo teor alcoólico, como cerveja e hidromel. Com o tempo, os bares começaram a oferecer destilados caseiros e os camponeses aprenderam como fazer os seus próprios exemplares de maior teor alcoólico em casa.
Até o início do século 20, o estado regulava apenas a venda dessas bebidas, que era sobretaxada, e também detinha o monopólio comercial, mas prestava pouca atenção no consumo. Quando o alcoolismo se tornou um problema, foi preciso tomar mais atitudes em relação ao tema, com o banimento do samogon. Alguns historiadores contestam essa versão e apontam para o fato de que havia muita perda de receita no comércio do álcool legalizado e, por isso, a produção caseira foi proibida.
Batalha contra os fabricantes artesanais
A primeira Lei Seca foi decretada pelo tsar Nicholas II durante a Primeira Guerra Mundial — determinava que só se podia comprar álcool em restaurantes. Nos vilarejos, essa lei fez com que a produção de destilados caseiros crescesse. Em lugares remotos dos Urais, nos quais os braços da lei não chegavam, todo mundo consumia essas bebidas. Com o tempo, os destilados dos campos se tornaram um negócio muito lucrativo para os contrabandistas.
Ao chegar ao poder em 1917, os bolcheviques deram continuidade ao banimento tzarista. E as punições eram duras: anos de trabalhos no campo e confisco de propriedade. Havia patrulhas especiais para fiscalizar operações ilegais em todo o país. Os anos soviéticos foram fartos em campanhas contra o álcool em vários níveis de severidade. Nessa época, a vodca chegou a ser totalmente proibida. Mas esses esforços de acabar com a fabricação artesanal de bebidas falharam e a atitude se tornou uma espécie de protesto contra o regime.
Nas décadas de 1960 e 1970, quando outras bebidas de alto teor alcóolico, como vermute e vinho do Porto, e que não eram caras, apareceram no mercado, os itens caseiros ficaram menos populares. Mas no início dos anos 1980, o consumo de álcool disparou: um em cada três homens do país bebia com frequência e uma nova lei seca soviética foi instaurada em 1985, de novo sem muito sucesso. O álcool se tornou escasso, o que fez a produção artesanal ter uma nova onda. “Eu era pequena, mas me lembro que minha avó destilava em casa, escondida dos vizinhos por medo de que eles a denunciassem”, diz Iulia. “Para disfarçar o cheiro, ela torrava pão.”
Após o colapso da União Soviética, quando o álcool barato literalmente jorrou nos mercados do país, muitas pessoas começaram a comprar bebidas artesanais de seus amigos e vizinhos para evitar os efeitos colaterais dos produtos de baixa qualidade. Hoje, fazer destilados em casa é permitido na Rússia, mas apenas para consumo próprio, não para comercializar. As lojas, por sua vez, oferecem alambiques de todos os tipos. Na família de Iulia, é a sua mãe que toca a atividade: “Ela e as amigas são fascinadas por fazer destilados artesanais.”
Do que são feitas as bebidas hoje?
Para começar, as pessoas fazem uma mistura de açúcar, água e levedura que é deixada para fermentar por uma a duas semanas e, depois, é destilada para extração do álcool. O moonshine tem duas partes que não são próprias para o consumo, conhecidas como a “cauda” e a “cabeça” – a primeira e a última parte resultante da produção, que contêm álcool etílico e compostos voláteis que são bastante tóxicos (embora tenha gente que seja fã dessas substâncias). Só o “coração” deve ser bebido. A teor desses destilados fica em torno de 40% a 50% de álcool e os especialistas recomendam não somente descartar a cabeça e a cauda, mas destilar a bebida duas vezes para total segurança.
“As boas bebidas artesanais têm um aroma gostoso e você não precisa virar o copo”, diz Maxim. “Já provei bebidas de todos os tipos, boas e ruins.”
Em geral os destilados são feitos a partir de alimentos que contêm açúcar ou amido. Pode ser cevada, milho, trigo, batata, beterraba ou frutas. “Nos tempos da URSS, eram usadas geleias velhas e comportas com a adição de açúcar e leveduras. Deixava-se repousar por algumas semanas e isso gerava um cheiro bem forte. Os melhores são feitos com açúcar comum, pois ele tem gosto neutro e pode ser misturado com qualquer coisa”, lembra Iulia.
De acordo com as entrevistas feitas para esta reportagem, o destilado puro tem cheiro e gosto bastante característicos, por isso muitas pessoas gostam de misturá-lo com ervas e frutas. As mais populares são uma combinação de açafrão e alecrim (para aroma sem que o sabor se altere muito), cardamomo e noz-moscada (mais picante) e raspas de limão com folhas de louro (mais cítrico). Cores muito bonitas são obtidas com estragão (verde) e frutas vermelhas (bordô)
A mãe de Iulia desenvolveu receitas bastante elaboradas: “ela faz uma infusão com frutas secas, limão e centeio tostado”, conta a filha. Para a maioria das pessoas, a destilação é um hobby, não um negócio. “Minha mãe ama o processo em si, em muitos aspectos é uma espécie de alquimia”, resume Iulia.
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