Como o filho de um escriturário se tornou o primeiro graduado russo em Cambridge

História
ANNA POPOVA
No final do século 16, o tsar de Toda a Rússia Boris Godunov se tornou o primeiro governante a enviar filhos de nobres russos para estudar no exterior. Um dos 18 primeiros foi Nikifor Olferiev que, em 1602, viajou à Grã-Bretanha para estudar latim e inglês.

“Diferenças de idiomas podem produzir diferenças de pensamentos, que são perigosas para a Igreja” — esta era a posição oficial do clero ortodoxo russo durante o reinado de Boris Godunov (1552-1605), segundo o livro “História do Estado Russo” do historiador Nikolai Karamzin. Muito antes das reformas pró-europeias de Pedro, o Grande, foi Boris Godunov que quis abrir a primeira universidade em estilo ocidental em Moscou e, assim, convidar professores estrangeiros. Godunov até tentou reproduzir as tradições da educação europeia na Rússia, mas foi obrigado a seguir outro caminho.

Devido à reação fortemente negativa da igreja conservadora, que tinha medo das tradições estrangeiras, Godunov não conseguiu implementar o seu plano de abrir uma instituição educacional europeia na capital russa, mas encontrou uma forma alternativa de implementar a sua ideia: em 1602, o tsar enviou 18 jovens para estudar latim e línguas estrangeiras em países europeus.

Alunos esquecidos

Quatro dos estudantes foram para a Inglaterra. Isabel 1ª da Inglaterra prometeu aceitá-los e concordou com a condição estabelecida por Boris Godunov: os estudantes russos não seriam estimulados a mudar de fé durante os estudos. Ao retornar, eles deveriam entrar em serviço no Departamento do Embaixadores — o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia na época.

Os quatro foram distribuídos em diferentes universidades. O filho de um escriturário, Nikifor Olferiev, foi enviado para Cambridge, onde estudou primeiro no colégio St John’s e, depois, no Clare College. Porém, em 1605, Godunov morreu repentinamente, e o Falso Demétrio 1º subiu ao poder em Moscou, marcando o início do “Tempo de Dificuldades”. Somente em 1613, quando o tsar Mikhail Fedorovich Romanov (também conhecido como Miguel 1º da Rússia, em português) assumiu o trono, é que os russos lembraram dos seus estudantes valiosos no exterior. O embaixador russo Aleksêi Ziúzin decidiu buscar os russos para repatriá-los e ficou desagradavelmente surpreso. Três deles já haviam se estabelecido em terras estrangeiras: Sofon Kôjukhov e Kazarin Davidov trabalhavam para a Companhia das Índias Orientais em Bornéu e Java, e Fiódor Kostomarov acabou na Irlanda como secretário real. Apenas Nikifor Olferiev permaneceu na Inglaterra, onde ficou conhecido como Nikephor Alphery.

Trazendo Olferiev de volta

Nikephor Alphery conseguiu se formar em Cambridge graças à ajuda da família de John Bidell, que conheceu durante os estudos. O pai de John negociava com a Rússia e decidiu apoiar financeiramente o jovem que estava longe de sua terra natal. Nikephor mudou de fé para a anglicana, fechando, assim, o caminho para a sua terra natal. Todos que “caíssem no pecado da heresia” eram severamente punidos na Rússia. Nas crônicas russas há relatos de que todos os traidores da fé foram queimados ou enterrados vivos. Aliás, essa proibição de deixar a Ortodoxia na Rússia permaneceu até 1905.

Mas os embaixadores russos não desistiram: Alphery tinha que ser levado para casa, mesmo desrespeitando os votos. Os conhecimentos do russo eram de grande importância para o Estado. Os diplomatas russos enviaram ao Parlamento inglês e ao rei Jaime 1º inúmeros pedidos, ameaçaram deteriorar as relações entre os países e dificultar o comércio dos ingleses com a Rússia. Eles argumentaram que Alphery simplesmente cometera um erro devido à sua pouca idade e deveria voltar à pátria. Os diplomatas até tentaram sequestrá-lo, mas tudo sem sucesso. O Conselho Privado do Reino Unido decidiu não deter Alphery e permitir que ele permanecesse na Inglaterra.

Em 1618, Alphery recebeu uma paróquia em Huntingdonshire, casou-se com a filha de um ministro e viveu em Woolley com sua família até morrer em 1666.

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