Desde o século 11, muitos russos começaram a seguir literalmente o apelo de Jesus Cristo de que os fiéis largassem tudo e o seguissem. Eles iam para a Terra Santa para venerar os lugares santos e receber lições de piedade e levavam para casa ramos de palmeira, ou seja, a mais simples prova de que realmente haviam estado em Jerusalém. Esses peregrinos foram os primeiros stránniks russos — mas eles não viajavam apenas por motivos religiosos.
Na Rússia, desde os tempos mais antigos, havia uma alta mobilidade da população. Quando os tsares começaram a introduzir a servidão e o serviço militar, surgiram muitas pessoas que, em resposta a essa repressão, deixavam tudo e partiam sem destino fixo.
O historiador Serguêi Puchkariov escreveu que “no Estado de Moscou havia muitas ´andarilhos livres´ que não estavam registrados nem como servos e nem como pagantes de impostos - nem municipais, nem ao Soberano”. Segundo ele, a maioria deles eram filhos de clérigos que não tinham seguido a carreira dos pais, filhos de militares que não ingressaram para o serviço militar, filhos de servos que não tinham as próprias terras, trabalhadores contratados, bufões, mendigos e vagabundos.
Por que os stránniks eram tão respeitados?
Vassili Perov. "Strannik", 1859.
Museu Estatal A. N. Radischev de Arte de SaratovNa Rússia Antiga os pobres stránniks (mendigos e andarilhos) eram reverenciados pela sociedade como santos do povo. A elevada qualidade de um stránnik podia ser comparada dos “iurôdvi”, os “loucos por Cristo” (leia mais sobre eles aqui).
O Dicionário Enciclopédico Efron & Brockhaus, publicado no final do século 19 e considerado a “versão russa da enciclopédia Britannica”, descreve um tipo especial de mendigo russo, diferente daquele da Europa Ocidental.
"O mendigo ocidental é, na grande maioria dos casos, mentalmente, moralmente e materialmente pobre; [na Rússia] há mendigos inteligentes, que são ´persona grata´ em cada casa onde entram, contadores de histórias interessantes e inesgotáveis", lê-se na enciclopédia russa.
“São pregadores mendigos viajantes que explicam os ensinamentos de Cristo não por meio de fórmulas teológicas, mas por suas próprias palavras. Eles eram mais próximos e compreensíveis para as pessoas comuns”, escreve o filósofo e especialista em stránniks, Daniil Dorofeev.
Iliá Repin. Stránniks pedintes, 1878.
Galeria TretiakovAlém disso, os stránniks desempenhavam o papel de um “jornal vivo". Esses peregrinos e andarilhos podiam transmitir à população analfabeta notícias sobre novos regulamentos da Igreja, concílios e ordenações de hierarcas. Os stránniks eram frequentemente chamados para orar por alguém em lugares sagrados, colocar velas, encomendar orações memoriais ou simplesmente passar bilhetes e correspondências a regiões distantes.
Os stránniks ajudavam a levar correspondência tanto de camponeses comuns, como notas criptografadas dos anciãos e hierarcas da Igreja. Era impossível interceptar essa correspondência, porque havia muitos stránniks, todos parecidos, miseráveis, vestidos com roupas cinzentas e bolsas velhas em que ninguém conseguia encontrar a carta escondida.
No entanto, o termo stránnik reúne muitos tipos de mendingos e peregrinos russos.
‘Káliki’
Reprodução de "Stránnik", de Vassíli Perov.
Pável Babanov/SputnikInicialmente, na Rússia Antiga, os stránniks eram chamados de "káliks". A palavra "kalika", no singular, vem da língua russa antiga, e pode ser feminina e masculina. O grande linguista russo Vladimir Dal, em seu dicionário da língua russa, explica: “kalika - em canções e lendas antigas é um peregrino, um andarilho, um stránnik; um herói mendicante, em miséria e caridade." Essa palavra provavelmente se origina do turco "kalak", ou seja, "desfigurado".
Os “kaliks” vagavam em grupos, e esses tinham estrutura e hierarquia. O dicionário Brockhaus contém uma descrição de um grupo de kaliks da província de Minsk (atual capital da Bielorrússia). "O grupo é liderado por um ataman [título de líder de cossacos] cego. Para ter o direito de ostentar o título de verdadeiro mendigo, era preciso estudar durante 6 anos, contribuindo com uma quantia insignificante anualmente, e passando no teste de conhecimento de orações, poemas, canções de mendigos e da linguagem especial dos mendigos.
Havia até um tesoureiro na grupo, e as decisões eram tomadas nas assembleias gerais, onde todos os chefes eram eleitos. Quem desrespeitava as regras era punido: seu bolso de mendigo era cortado, como ato simbólico.
Illarion Prianichnikov. "Kaliks passando."
Galeria TretiakovContadores de histórias e músicos
Entre os “káliks” havia contadores de histórias cegos e solitários, muitas vezes acompanhados por um guia. Eles coletavam esmolas, entoavam cânticos da Igreja e liam salmos, às vezes acompanhados por um realejo, harpa ou domra.
Esses contadores de histórias cegos também visitavam os aposentos reais. Em Aleksandrovskaia Sloboda, residência do primeiro tsar de Toda a Rússia, Ivan, o Terrível, eles contavam histórias ao monarca antes de dormir.
Todos os stránniks conheciam muitas histórias e boatos e eram sempre bem-vindos na ala feminina dos palácios reais do século 17, onde salas de jantar e dormitórios separados eram arranjados para eles nos primeiros andares.
Em muitos casos, esses contadores de histórias quase não se distinguiam dos “skomorokhs” russos, uma espécie de trovador local. Músicos e atores mambembes, os "skomorokhs" se moviam de uma aldeia a outra oferecendo seus serviços de entretenimento: apresentando-se em casamentos e festas.
Mikhail Nesterov. "Viajantes. Além do Volga", 1922.
Coleção privadaOs "skomorokhs" foram oficialmente proibidos e, no final do século 17, quase deixaram de existir. Antes disso, porém, nenhum casamento ou funeral podia acontecer sem eles. Em sua juventude, segundo alguns relatos, Ivan, o Terrível, adorava dançar com os "skomorokhs".
Grupos de "skomorokhs" eram organizados da mesma maneira que os grupos de mendigos profissionais. Leia sobre porque os tsares e os sacerdotes ortodoxos russos estavam contra "skomorokhs" e os proibiram aqui.
"Prochaks" e coletores
“Doem, cristãos ortodoxos, para a Igreja de Deus, para um edifício de pedra!” Esse pronunciamento foi repetido por centenas de anos em todas as ruas e praças russas. Quem gritava isso eram os "prochaks", ou seja, coletores de esmolas cuja finalidade era doar tudo às necessidades da Igreja. A palavra "prochak" provém do verbo russo "prosit", ou seja, "pedir", em português.
Iliá Répin. Procissão da Cruz na província de Kursk.
Galeria TretiakovO historiador especializado em stránniks Serguêi Maksimov descreveu os "prochaks" assim: “Um armiak [casaco de manga comprida de lã grossa] azul ou preto de corte burguês, com cinto alto apertado de maneira festiva, com pretensão de solidez e solenidade. Quase todos os ‘prochaks’ são idosos, todos, sem exceções, seguram em suas mãos livros embrulhados em trapos de tafetá preto, com tranças em forma de cruz costurada. Em cima do livro há moedas de cobre."
“Em lugares ricos, por exemplo, em cidades mercantis e perto das catedrais, essas pessoas formam longas filas, de dezenas de pessoas”, escreveu Maksimov. Entre esses coletores também havia muitas freiras, que sempre pediam esmolas junto com duas noviças que coletavam o dinheiro, e monges.
Stránniks solitários
Isaak Levitan. "Vladimirka", 1892.
Galeria Tretiakov"Tomei consciência de minhas iniquidades, me arrependi, confessei, dei liberdade a todas as pessoas que serviram sob meu comando e prometi, pelo resto da vida, me atormentar com todos os tipos de trabalho e me esconder de forma miserável. [....] Já há 15 anos que estou vagando por toda a Sibéria. Às vezes, trabalhava junto com camponeses, às vezes, me alimentava em nome de Cristo. Ah! Em todas essas dificuldades, que bem-aventurança, felicidade e paz de consciência eu experimentei".
Estas são as palavras de um nobre príncipe que largou tudo para ser um stránnik, de acordo com o livro “Histórias francas de um ‘tránnik relatadas ao seu pai espiritual”, muito popular na Rússia do século 19, e de autoria desconhecida.
Esses stránniks solitários, que abandonavam deliberadamente suas vidas para vagar sozinhos, eram os mais respeitados na Rússia. O pintor Vassíli Perov descreveu o solitário stránnik Khristofor Bárski assim: “Alto, mas já curvado, como o galho superior de um abeto alto que no meio de um inverno quente está coberto de neve fofa. Sua barba não era tão branca quanto a de um príncipe, mas grisalha, parecida com a cor de prata de segunda mão, mas bem aparada; olhos tristes, como se estivessem cobertos de flores pretas de um tempo de longo sofrimento... Em vez de uma capa, ele usava um cafetã de camponês, largo, com cor de pão de centeio, cingido com um cinto estreito com fivela de cobre... E apesar de um traje tão pouco atraente, em toda a figura do velho, principalmente em seu rosto, havia algo inconsistente com seu traje e posição."
Ivan Kramskoi Contemplador. 1876
Museu da Arte Russa, KievO famoso escritor russo Anton Tchekhov, também escreveu sobre os stránniks: Imagine, em toda a terra russa, quantas dessas plantas rolantes havia neste país! Procurando o melhor lugar, eles caminhavam pelas grandes estradas rurais ou, esperando o amanhecer, cochilavam em pousadas, tabernas, hoteis, na grama sob o céu..."
O povo recebia os stránniks com prazer, porque admirava sua liberdade e seu conhecimento do mundo e das pessoas. "Era uma religião popular, enquanto os stránniks eram os santos populares; eles estavam livres do poder da instituição religiosa ou estatal, estavam próximos do povo, porque nunca se separavam dele, estavam constantemente diante de seus olhos... Cada pessoa tinha a possibilidade de aderir a esses ideais, tornando-se um stránnik", escreveu o especialista em stránniks, Daniil Dorofeev.
Stránniks-vagabundos
“A multidão correu até ele [o padre], pedindo bênçãos, conselhos e ajuda. Entre eles havia stránniks mulheres, que sempre andam de um lugar santo a outro, de um ancião a outro, sempre humildes diante de cada santuário e de cada ancião. Também entre as pessoas havia os stránniks, principalmente soldados aposentados, que haviam se afastado de uma vida estável, pobres, em sua maioria, idosos bêbados, que vagavam de mosteiro para mosteiro apenas para se alimentar", assim Lev Tolstói descreve os stránniks na sua obra-prima "Padre Sérgio”.
Nem todos os stránniks eram verdadeiros crentes ou levavam vidas piedosas. O destino empurrava para a rua muitas pessoas comuns que eram forçadas a escolher as esmolas como forma de subsistência. Elas constituíam a enorme massa cinzenta que sempre estava perto dos locais de peregrinação.
No início do século 20, quando já existiam muitas ferrovias na Rússia e a mobilidade da população aumentou, o fenômeno dos stránniks começou a desaparecer.
O útimo imperador russo Nicolau 2º e sua família ainda acolhiam diversos stránniks, entre eles, Vassíli Bossonógui e Paraskeva Saróvskaia, mas essas pessoas, amplamente conhecidas e admiradas, já estavam longe dos verdadeiros stránniks, que sempre se distinguiam principalmente pelo anonimato.
Além disso, após o nascimento de seu tão esperado herdeiro, o casal imperial russo perdeu completamente seu interesse pelos stránniks.
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