As ofensas russas contra os tsares (e suas punições)

Kira Lissítskaia (Foto: Corbis/Getty Images; Jean-Marc Nattier; Peter Pavlov/MAMM/MDF/russiainphoto.ru))
Os russos nem sempre apoiavam seus tsares e imperadores, e prova disso é que arquivos dos órgãos de investigação estatais russos registram muitos xingamentos que o povo lançava sobre os soberanos. E somente isso já era motivo de prisão — quando não de decapitação.

Em 1737, Ivan Pavlov, um escrivão do exército russo, entregou-se ao serviço de segurança estatal russo, chamando Pedro 1° de "blasfemador" e "desafiador de Deus". Sob interrogatório, Pavlov disse não arredar pé em sua posição e estar pronto a enfrentar a pena de morte. Seu pedido foi respeitado pela decisão do Gabinete de Ministros.

Cabeças rolando

Stepan Razin, por Serguêi Kirillov, 1985-1988.

Em 1737, Pedro, o Grande, já estava morto, mas xingar sua figura significava desrespeito os tsares em geral e, por isso, Pavlov foi executado, seguindo a lei. Xingar ou criticar publicamente o príncipe soberano russo era um crime punível com morte por decapitação desde pelo menos os séculos 13 a 14, antes mesmo do nascimento da Rússia como Estado.

Em 1649, sob o reinado de Aleixo da Rússia (1629-1676), o código de leis do Conselho da Terra (Sobórnoie Ulojénie) incluiu mais atitudes que eram consideradas como “desaprovar o tsar” – e, portanto, configuradas como crime. Foi durante o reinado de Aleixo da Rússia que o Prikaz táinikh del, a primeira instituição de polícia secreta, foi introduzida.

O Prikatáinikh del investigava, entre outras coisas, casos de ameaça à vida do tsar ou de criticar os atos do tsar. Eis alguns exemplos. Um mujique chamado Savva Korelin disse: "O tsar é jovem e tolo, e só segue os conselhos de seu filho" — por essa frase, o mujique foi preso imediatamente. Outro homem, Dmítri Chmaraev, agradeceu a um amigo por emprestar-lhe aveia, dizendo: "Você é melhor que o tsar!" — o próprio amigo o denunciou, e Dmítri teve que fugir de sua cidade natal.

Até mesmo comparar-se ao tsar podia resultar em prisão, enquanto repreender seus atos publicamente podia resultar em ter a língua cortada e toda a família exilada para a Sibéria, como aconteceu com um camponês chamado Iliá Porchnev, proveniente da região de Níjni Nôvgorod.

O imperador anticristo e sua mulher camponesa

Pedro o Grande, filho de Aleixo da Rússia, foi repreendido pelo povo russo devido a nova ordem que estabelecia no país - muitos acreditavam, supersticiosamente, que após o "ano do diabo" de 1666 (Pedro nasceu em 1672), chegaria um “anticristo”. E Pedro, que foi o primeiro tsar a não usar barba, e a praticar esportes com roupas europeias e adotar vícios europeus como fumar e beber, foi visto por muitos como o próprio anticristo.

Alguns membros da seita dos “velhos crentes” durante o governo de Pedro — e também — depois preferiam queimar vivos que viver sob o domínio do “anticristo”. Mas também havia punições por ofensas menores ainda que repreender diretamente as ações do tsar. Em 1720, por exemplo, Andrêi Saveliev, um corista, recebeu 50 chicotadas por apontar, em fúria, para o retrato de Pedro com sua bengala.

A mulher de Pedro, Catarina 1ª, que foi a primeira imperatriz no trono russo, também tinha suas ações repreendidas pelo povo, já que a patriarcal sociedade russa do início do século 18 não conseguia se acostumar a ver uma mulher como soberana. Documentos da Chancelaria Privada (instituição que substituiu o Prikatáinikh del) mostram que foram aplicadas penalidades contra pessoas que ousaram mencionar as origens de Catarina 1ª (pois ela era realmente descendente de camponeses). Um homem chamado Kalin Ribkin teve sua língua cortada e foi exilado na Sibéria por xingar Catarina enquanto contava uma piada.

Imperatrizes vingativas

Até mesmo expressar compaixão pela imperatriz podia ter consequências terríveis: em 1739, Avdotia Lvova foi denunciada por cantar uma canção sobre a juventude perturbada da imperatriz Anna da Rússia. A canção lamentava que Anna tivesse sido obrigada a se casar com um príncipe estrangeiro, seguindo a ordem de seu tio, Pedro, o Grande. Devido à canção, Avdotia Lvova foi torturada em um cavalete.

Sob o governo de Isabel da Rússia, dezenas de pessoas foram enviadas a campos de trabalhos forçados por terem falado sobre a vida privada da imperatriz com seus amantes. Em 1742, Grigóri Timirazev, capitão do regimento Preobrajénski, disse em conversa particular com seu subordinado que Isabel tinha cinco amantes, que conhecia alguns de seus filhos e que eles tinham sido favorecidos com promoções em serviço. O soldado que ouviu tudo isso denunciou Grigóri à polícia secreta e o capitão foi demitido e enviado a uma prisão na Sibéria.

Falar sobre a vida privada ou ser machista contra uma soberana era letal também no governo de Catarina, a Grande – só por dizer que imperatriz era uma "bába" (coloquialismo com conotação pejorativa para se referir a uma mulher, geralmente acima dos 40 anos), ou que "é ordem do diabo curvar a cabeça diante de uma mulher", e assim por diante.

Mas cuspir no tsar pode?

Nicolau 1°.

Nem todos os soberanos russos, entretanto, eram tão vingativos. Em 1845, o primeiro Código Penal foi introduzido na Rússia. Ele afirmava que qualquer comportamento ofensivo contra o imperador, membros da família imperial, ou mesmo seus retratos, era uma ofensa criminal. A sentença podia ser alterada se o crime fosse cometido em estado de embriaguez - porque, naturalmente, a maioria das apregoações contra o imperador eram ditas em tavernas por clientes embriagados.

O imperador Nicolau 1° chegou até a tratar esse tipo de casos com humor. Uma vez, um soldado chamado Agafon Suleikin ficou bêbado em uma taberna e cuspiu no retrato do imperador pendurado na parede. O ocorrido foi denunciado e Nicolau 1° ficou sabendo.

Em vez de enviar o pobre soldado para a Sibéria, Nicolau 1° ordenou: "Anunciem a Agafon Suleikin, na frente de todo seu regimento, que eu cuspi nele também. E como esse bêbado infeliz não sabia o que estava fazendo, declaro o caso encerrado. Além disso, proíbo que pendurem retratos reais em tavernas a partir de agora.”

Alexandre 2°.

Entretanto, alguns membros da família real ainda usavam seu poder para fazer pouco de seus próprios súditos. O príncipe Piotr Kropótkin escreveu em suas memórias sobre como o jovem Alexandre 3°, então Grão-Duque, xingou um jovem oficial que estava encarregado do fornecimento de armas no exército imperial, durante o reinado de seu pai, Alexandre 2°. O oficial, um sueco a serviço russo, ficou profundamente ofendido. Ele sabia que não podia xingar o Grão-Duque Alexandre de volta, pois era crime. "Ele saiu imediatamente e enviou uma carta ao Grão-Duque, na qual ele exigia que Alexandre pedisse desculpas. O oficial acrescentou que se não houvesse um pedido de desculpas em vinte e quatro horas, ele se mataria".

Infelizmente, Alexandre não pediu desculpas e o oficial cometeu suicídio. Quando o pai e tsar Alexandre 2° soube, ficou furioso. "Alexandre 2° ordenou que seu filho seguisse o caixão do oficial até o túmulo. Mas nem a terrível lição curou o jovem da arrogância e temperamento quente típicos da família Romanov", escreveu Kropotkin.

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