Por que os carrascos sempre estiveram em falta na Rússia?

Da esq. para dir.: condenado siberiano marcado por tentativa de fuga; o algoz de Kara; um prisioneiro amedrontado pelo chicote. As fotos datam por volta de 1860.

Da esq. para dir.: condenado siberiano marcado por tentativa de fuga; o algoz de Kara; um prisioneiro amedrontado pelo chicote. As fotos datam por volta de 1860.

Hulton Archive/Getty Images
No início do século 19, todos os algozes eram, eles mesmos, condenados.

A maioria das horríveis execuções durante o reinado de Ivan, o Terrível (1530-1584) eram realizadas na presença dele e de seus guardas mais próximos. Em 1570, o chefe deposto das Relações Exteriores de Moscou, Ivan Viskovatov, foi executado por traição: os “oprítchnik” mais próximos do tsar se revezavam para cortar os membros de Viskovatov e desfigurar seu corpo.

Durante uma execução em massa após um motim em Moscou, em 1698, Pedro 1° (também conhecido como Pedro, o Grande) levou a cabo pessoalmente o cumprimento da sentença de cinco guardas streltsi. Três ministros dele, os príncipes Romodánovski, Golítsin e Ménchikov também colocaram à prova suas habilidades na execução de condenados.

Comércio de execuções

Na Rússia, por muito tempo, não existiam carrascos profissionais. Antes de Moscou se tornar um Estado, as execuções eram realizadas por milícias sob o comando de príncipes russos, e isso se estendeu pelo século 16. Mas mais tarde, em 1649, o Código do Conselho (Sobórnoie Ulojénie), ou seja, o código de leis do Tsarado de Moscou, foi introduzido, trazendo a necessidade de algozes profissionais cumprirem não tanto penas de morte, mas castigos corporais.

Em 16 de maio de 1681, a Duma dos Boiardos ordenou que todos os voevoda (chefes da administração local) da cidade contratassem algozes entre os residentes locais. Se ninguém se candidatasse, o carrasco era escolhido deliberadamente entre o "povo livre" e, portanto, nenhuma cidade ficaria sem um carrasco. O salário anual era de 4 rublos – o que não era muito, e ficava abaixo do de um soldado do exército, que era de 6 rublos. (Naquela época, um jantar custava entre 0,04 e 0,05 rublos).

Ilustração de execução por chicote feita por volta do ano 1800 na Rússia.

Obviamente, era necessário que os algozes tivessem outra forma de ganhar dinheiro, e os parentes dos condenados costumavam estar dispostos a pagar para aliviar a execução ou excluí-la completamente. Friedrich Zeider, um padre condenado a chicotadas e exílio durante o reinado de Paulo 1° por encomendar livros proibidos do exterior, escreveu sobre isso em detalhes:

“Fui conduzido ao pelourinho, onde amarraram minhas mãos e pés. Quando o carrasco jogou um cinto em volta do meu pescoço para amarrar minha cabeça e arquear minhas costas, ele apertou com tanta força que eu gritei de dor. Depois de terminar todos os preparativos e descobrir minhas costas para os golpes fatais, o carrasco se aproximou de mim. Eu esperava a morte com o primeiro golpe... De repente, um som cortou o ar. Era o som de um chicote, o mais terrível de todos os chicotes. Sem tocar meu corpo, os golpes tocaram levemente o cós da minha calça...”

O carrasco foi subornado por amigos que lhe queriam bem e, assim, a pena de Friedrich Zeider foi "executada" apenas “para inglês ver”. Esses subornos constituíam a renda principal dos algozes. Ainda assim, não havia muitos candidatos à posição.

Profissão esquecida por Deus

Homem chicoteado (de Achille Beltrame, La Domenica del Corriere).

A Igreja Ortodoxa detestava os algozes. De acordo com a cosmovisão ortodoxa, o carrasco era uma pessoa que havia escolhido a ganância à misericórdia. Por isso, os algozes não tinham permissão para tomar a comunhão ou outros sacramentos ortodoxos. Eles também eram evitados pelo público em geral, viviam separados da comunidade e era considerado impróprio comer na mesma mesa que eles ou ser seu amigo.

Na década de 1740, havia um déficit considerável de algozes, por isso o Senado aumentou seu salário para 9,5 rublos. Durante o reinado de Paulo 1°, o salário subiu para 20 rublos, mas isso não ajudou: muito pouca gente se candidatava ao cargo. Em 1805, o governo permitiu a contratação de algozes entre os condenados - mas só aqueles que tivessem sido condenados por delitos pequenos, como desertores, ladrões, vigaristas etc.

A maioria dos condenados exilados na Sibéria eram chicoteados e marcados antes de deixar a Rússia Central - e sem algozes, isso não poderia ser feito. Assim, por volta de 1810, quase todos os algozes eram "convocados" dessa forma. Isso, na verdade, levou à uma economia: os algozes livres contratados exigiam pagamento, enquanto os algozes contratados dentre condenados eram pagos apenas de vez em quando e sua posição não oferecia praticamente nenhum direito.

Treinado para mutilar

Marcação no rosto de condenado e ferramenta usada para fazê-la. Início do século 19.

Como a maior parte dos algozes eram condenados cumprindo pena, eles viviam em prisões. Mas eles tinham mais liberdade - muitos deles eram sapateiros ou alfaiates. Eles tinham que melhorar suas habilidades como algozes, porém, por isso faziam manequins de casca de bétula para se exercitar no chicote. Esse treinamento exigia cerca de um ano de aulas diárias. Portanto, os carrascos recém-chegados passavam muito tempo como aprendizes e aprendiam a testemunhar a execução e a não dar atenção a sangue e gritos, entre outras coisas.

No início do século 19, havia tão poucos carrascos na Rússia que eles faziam "viagens a trabalho" para diferentes regiões. Quando ele chegava, geralmente já havia dezenas de condenados aglomerados nas prisões esperando a execução. O carrasco ficava um ou dois dias para completar suas tarefas e partir para outra cidade. Mas quando havia necessidade de punir centenas ou até milhares de pessoas, essas viagens de negócios duravam meses.

Enforcamento dos dezembristas. Cena do filme

O pintor Lavrênti Seriakov lembrava de como a execução era geralmente realizada no século 19. “Um cavalo com alças foi impelido no campo de desfile. Dois algozes andavam perto dele, rapazes de cerca de 25 anos de idade, musculosos, de ombros largos, camisas vermelhas, calças pregueadas e botas largas. Cossacos e um batalhão de reserva ficaram posicionados ao redor do recinto do desfile e, atrás deles, os parentes dos condenados se aglomeravam.”

“Por volta das 9 da manhã, os condenados chegaram ao local da execução: 25 pessoas. Eles foram colocados no cavalo. O primeiro recebeu 101 chicotadas. O carrasco afastou-se 15 passos do cavalo e, lentamente, começou a caminhar em direção ao condenado, com seu chicote arrastando pela neve. Quando o carrasco se aproximou, balançou o chicote bem alto com a mão direita, ouviu-se um apito no ar e depois um golpe. Parecia que o carrasco cortava a pele muito profundamente desde a primeira chibatada, porque a cada golpe limpava com a mão esquerda um punhado de sangue do chicote. Aos primeiros golpes, geralmente ouvia-se um gemido surdo entre os executados, que logo cessava, depois eram picados como carne. Depois de dar 20 ou 30 chicotadas, o carrasco se aproximava de uma garrafa que estava bem ali na neve, servia um copo de vodca, bebia e voltava ao trabalho. Tudo isso era feito muito, muito lentamente.”

Em 17 de abril de 1863, o imperador Alexandre 2° proibiu os castigos corporais (mutilações, chicotadas, marcações humanas etc.) na Rússia. Assim, os poucos algozes ativos foram simplesmente devolvidos às prisões de onde vinham, como os condenados comuns, pelo resto de suas sentenças. Em abril de 1879, depois que os tribunais distritais militares receberam o direito de impor a pena de morte ao exército, havia apenas um único carrasco para toda a Rússia - um homem chamado Frolov. Ele viajava de cidade em cidade sob escolta militar para enforcar os condenados.

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