Diplomacia alcoólica, uma prática que perdurou na Rússia Imperial contra enviados estrangeiros

Kira Lissítskaia (Foto: Maria Giovanna Clementi; Georg Cristoph Grooth; Antoine Pesne)
Como descobrir o que passa pela cabeça de um embaixador estrangeiro? Soltando sua língua com bebida, claro!

Os príncipes e governantes de Moscou chocavam os europeus com a quantidade de vodca e bebidas alcoólicas que lhes forneciam todos os dias. "O tsar me convocou também e me deu, ele mesmo, uma taça de vinho", escreveu Raffaello Barberini, um nobre italiano que, em 1564, levou a Ivan, o Terrível, uma carta da rainha Elizabeth da Inglaterra.

"Imediatamente depois disso, uma embriaguez tomou fortemente minha cabeça e, esquecendo todo decoro e modéstia, rumamos todos para a porta até que finalmente chegamos ao alpendre do palácio, onde, a vinte passos ou mais de distância, os criados nos esperavam com os cavalos. Mas quando descemos do alpendre para chegar aos nossos cavalos e ir para casa, tivemos que ir tateando pela lama, que ia até nossos joelhos, e já era noite escura, não havia luz em lugar algum, de modo que sofremos bastante até subirmos nos cavalos.”

As aventuras alcoólicas descritas por Barberini não foram um evento à parte. "Muitos estrangeiros, sabendo da costumeira hospitalidade russa, sentavam-se à mesa com medo de serem obrigados a encher a cara", escreveu Vassili Kliutchevski.

“A cerveja era trazida de trenó”

Banquete do tsar.

A princípio, nos séculos 15 e 16, os príncipes e tsares moscovitas recebiam pessoalmente cada embaixada. No século 17 aumentou o número de embaixadores estrangeiros e não era com todos os Estados que havia boas relações – a partir então, a refeição na presença do tsar ou mesmo uma bebida tornou-se um privilégio apenas para os mais honrados e respeitados convidados da embaixada.

André Rohde, secretário da Embaixada da Dinamarca na Rússia sob a liderança do enviado Hans Oldeland, em 1659, descreveu como eram servidos esses “drinks”:

"Eram trazidas bebidas: vinho, mel e vodca, em sete jarras prateadas e douradas de vários tamanhos e em cinco grandes jarras de estanho; quanto à cerveja, ela foi trazida em um trenó. Quando a mesa foi posta, foram colocados quantos pratos cabiam nela, e o resto foi entregue aos nossos criados. Depois convidaram o enviado para o jantar. Seguindo o costume russo, antes de mais nada, para despertar o apetite, ofereceram vodca a ele de um cálice muito bonito, com enfeites de ouro. Depois, encheram uma taça grande para cada um dos que estavam sentados à mesa, mas, ninguém ousou tocá-lo, esperando os brindes", escreveu Rohde.

Um cálice no século 17 comporta mais de 120 ml, portanto, não é de se estranhar que depois de um início de refeição assim o enviado dinamarquês demorasse a beber da grande taça. Mas o que os russos faziam nessas festas? De acordo com os dignitários e nobres russos da época, embebedar-se em um banquete do tsar, ou em qualquer banquete, era uma coisa respeitável e significava respeito pelo anfitrião.

Cálice esmaltado.

Como notou outro convidado a visitar a Moscou do século 17, o diplomata austríaco Augustin von Meyerberg: "O limite do ato de beber é a embriaguez, e ninguém sai da sala de jantar ela". A propósito, Meyerberg também não era um grande fã das recepções de embaixadores russos.

Em uma dessas visitas ele foi recebido por Afanássi Ordin-Naschokin, o chefe da diplomacia russa. Meyerberg ficou aliviado ao notar que Naschokin, "uma pessoa nada boba, que imitava nossos costumes, com uma gentileza amigável nos dispensou de seu modo de beber e da regra que ordenava beber até a embriaguez”.

No entanto, quando havia assuntos a tratar com o tsar, um enviado não podia ser liberado do costume – ao que tudo indica, os diplomatas russos estabeleceram para si próprios o objetivo de embebedá-los completamente.

"Receber bem os convidados significa embebedá-los"

Cálice.

A vodca (ou "vinho de pão", como era chamada em Moscou naqueles tempos) era o principal componente das provisões para os embaixadores estrangeiros. Entre os séculos 16 e 17, no tsarado de Moscou ela ainda era uma bebida extremamente cara, cujo monopólio de produção era detido pelo Estado.

Por exemplo, no governo de Miguel 1° da Rússia, John Meyrick, o embaixador inglês em Moscou, recebeu, diariamente, quatro taças de vodca (cerca de meio litro), uma taça (1,1 litro) de vinho de uva, três taças de mel embebido, uma taça e meia de hidromel e um balde de cerveja.

Os nobres que acompanhavam o embaixador receberam quatro taças de “vinho de pão” (mas de menor nível alcoólico que o do embaixador), uma taça de mel, três quartos de um balde de hidromel e metade de um balde de cerveja.

Sigismund von Herberstein.

Até mesmo os criados da comitiva do embaixador receberam, cada um, duas vodcas e meio litro de cerveja. As quantidades eram certamente muito mais do que se podia beber em um dia, e tudo isso era para ostentar a riqueza e a generosidade do tsar russo — e também, se possível, descobrir o quanto os embaixadores e sua comitiva podiam soltar a língua.

As festas de embaixadores importantes não terminavam no palácio do tsar. Desde o final do século 15, havia o costume de "dar, diretamente no pátio da embaixada, bebidas ao embaixador fornecida pelos moscovitas para receber o convidado estrangeiro e sua comitiva". Sigismund Gerberstein, que visitou Moscou no século 16, explicou como isso acontecia:

"Após a liberação dos embaixadores, aqueles que os acompanham até o palácio os levam de volta ao hotel, dizendo ter sido instruídos a estar lá e entreter os embaixadores. Eles trazem cálices e vasilhas de prata, cada um com uma bebida, e fazem o máximo para embebedar os embaixadores. Eles sabem perfeitamente como fazer as pessoas beberem: quando não têm mais motivos para levantar a taça, começam a beber à saúde do César, o soberano, e por último ao bem-estar daqueles que, em sua opinião, têm qualquer dignidade ou honra. Eles contam que ninguém deva, ou mesmo possa, recusar um copo em sua honra. E bebem igualmente. Quem começa pega o cálice e vai para o meio da sala; parado, com a cabeça descoberta, ele diz, eloquentemente, à saúde de quem está bebendo e lhe faz votos. Depois de beber todo o cálice e virá-lo, ele toca o topo da cabeça com ele para que todos possam ver que ele bebeu e deseja saúde ao senhor para quem ele está bebendo. Depois, ele vai para o lugar mais alto e pede que vários cálices sejam enchidos, após o que entrega a cada um seu cálice e dizendo em nome de quem se está brindando. Todos têm que ir, um a um, para o meio da sala e, depois de tomar todo o cálice, voltar ao seu assento. Quem quer evitar beber mais precisa fingir estar bêbado ou dormindo, ou pelo menos certificar os outros de que não pode mais beber, já que se acredita que receber bem os hóspedes e tratá-los bem é o mesmo que deixá-los bêbados.”

Os encarregados de embebedar os embaixadores traziam consigo uma longa lista de nomes de pessoas a quem se brindaria — para que as razões para beber não acabassem.

Klutchevski escreve: "Os oficiais de justiça muitas vezes alcançavam seu objetivo de embebedar o embaixador, muitas vezes, em histórias tristes." Mas muitas vezes também ocorria o contrário: já bêbado, o embaixador não falava uma única palavra sobre os segredos que guardava. 

O que acontecia se o embaixador simplesmente não conseguisse beber tanto? Nesses casos, o tsar graciosamente permitia que o convidado estrangeiro "não terminasse a taça", como aconteceu com Ambrogio Contarini ao visitar o governo do Grão-Duque Ivan 3°: o italiano mal conseguiu beber um quarto da taça que lhe foi entregue pelo tsar, mas o próprio Ivan Vassílievitch lhe deu permissão para não beber.

"Sua Majestade ficava muito zangada"

O maior entusiasta quando o assunto era embebedar embaixadores e convidados estrangeiros foi, Pedro, o Grande. O encontro com ele sempre tinha sido a ocasião em que os convidados europeus mais tinham bebido na vida inteira.

O tsar decapitando um inssurgente.

O maior testemunho disso foi deixado por Friedrich Wilhelm Berchholz, um nobre que conheceu Pedro, o Grande, pessoalmente e foi repetidamente forçado a se embebedar em sua companhia: "Eu tinha um medo terrível da embriaguez", confessou. Até mesmo seu soberano, o Duque Karl-Friedrich, entendia: "Sua Alteza sussurrou-me que eu devia derramar água vermelha na mesma garrafa de vime que a Borgonha e misturá-la com um pouco de vinho" - foi assim que o duque o aconselhou para evitar embriagar-se com Pedro.

Mas Karl-Friedrich não foi salvo com esse métodos: o tsar Pedro vigiava de perto para garantir que seus convidados bebessem "adequadamente" à sua saúde. Quando o duque tentou beber vinho “batizado” durante a festa, Pedro "tirou o copo de sua alteza e, depois de prová-lo, devolveu-o com as palavras: 'Seu vinho não é bom'".

Quando o duque tentou explicar que não estava bem e não podia beber muito, o tsar disse que o álcool diluído era ainda mais prejudicial que o puro, "e encheu o copo dele a partir de sua garrafa, que continha o vinho húngaro, forte e amargo, que ele geralmente bebia".

O príncipe Carl Frederick da Suécia.

Quando Pedro descobria que alguém não estava bebendo o suficiente, ficava com raiva. Berchholz lembrou-se: "O tsar descobriu que, à mesa, do lado esquerdo, onde os ministros se sentavam, nem todos os brindes eram feitos com vinho puro, ou pelo menos não com os vinhos que ele exigia. Sua majestade ficou muito irritada e ordenou a todos à mesa que bebessem um enorme copo de vinho húngaro como castigo. Como ele ordenou que os copos fossem enchidos de duas garrafas diferentes, todos que beberam ficaram imediatamente bêbados; acho que adicionaram vodca ao vinho.”

Resumindo, o tsar Pedro não poupava nem os seus, nem os outros. Lutas e embaraços eram comuns nos festivais tsaristas. Berchholz escreveu, por exemplo: "o Almirante [Apraksin] ficou tão bêbado que chorava como uma criança, o que é normal com ele em tais ocasiões. O príncipe Menchikov ficou tão bêbado que caiu morto, e seus homens foram obrigados a mandar buscar a princesa e sua irmã, que com a ajuda de vários espíritos o trouxeram de volta à saúde e pediram permissão ao rei para ir para casa com ele. Em uma palavra, havia muito poucas pessoas que não estavam completamente bêbadas.”

Sabe-se que a embriaguez petrina às vezes levava a consequências monstruosas. Por exemplo, o duque da Curlândia, Friedrich Wilhelm, a quem Pedro propôs casar com sua sobrinha, Anna Ioannovna, não sobreviveu a uma festa com o tsar russo - dois dias após as celebrações de casamento, o noivo morreu a caminho de São Petersburgo.

Mas Pedro, o Grande foi o último dos monarcas russos prontos a se embebedar tão abertamente com seus convidados e subordinados. Nos governos seguintes de membros da família Românov, a temível tradição russa da diplomacia alcoólica já não existiria mais.

 

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