As tradições que faziam os Romanov adoecerem

À esq.: Fiódor 3°. À dir.: O Palácio Terem.

À esq.: Fiódor 3°. À dir.: O Palácio Terem.

Russia Beyond (Hermitage Museum / Public Domain; Moscow Kremlin, Russia (CC BY-SA 3.0))
Dá para imaginar uma consulta realizada com uma cortina entre o médico e o paciente? Mas era assim que sucedia com as mulheres da família real no século 17.

A única coisa que um médico da família real — geralmente um estrangeiro do Departamento Farmacêutico — podia fazer com as mulheres da família do tsar, fosse a própria tsarina ou suas filhas e irmãs, era perguntar o que sentiam e que tipo de dor ou doença era. Ele nunca podia ver ou tocar seus corpos, e só quem podia cuidar delas eram as parteiras e amas, que praticavam a medicina popular.

De que os primeiros Romanov adoeciam?

Como escreve o historiador Ígor Zimin, as duas principais doenças dos primeiros Romanov eram a tuberculose infecciosa e o raquitismo, que geralmente se manifestavam nas pernas arqueadas e dores nos ossos. Isso significa que os jovens tsares tinham baixa imunidade e desnutrição, e careciam de vitaminas. Mas como poderia a família mais rica do país chegar a esse ponto?

A resposta: por meio de tradições malucas. Primeiro, em relação à maneira como os filhos do tsar viviam. Antes de completarem cinco anos, meninos e meninas da família do tsar ficavam nos aposentos das mulheres. Eles precisavam de ar fresco, mas viviam entre quatro paredes, atrás de janelas fechadas, porque a família do tsar tinha medo de que alguém visse seus filhos e jogasse neles um “mau-olhado”.

Tsarevitch Aleksêi Aleksêievitch (1654-1670), herdeiro do trono russo que morreu antes de completar os 16 anos.

Os quartos eram aquecidos, mas as paredes e o chão eram forrados com tecido para manter o calor e o berço também era forrado com tecido ou até mesmo pelagem animal.

Os bebês ainda eram enrolados em penas e travesseiros, sob um cobertor de pele. Considerava-se que, se o bebê não fosse enrolado bem apertado em seus primeiros anos — uma técnica, aliás, não só russa, mas empregada mundo afora até o século passado — ele cresceria torto e corcunda.

As crianças eram rodeadas de criados. Amas de leite, babás, amas noturnas, empregadas domésticas, lavadeiras, costureiras... a lista é longa. Mas a saúde da criança era outra história...

A historiadora Vera Bokova descreve as responsabilidades diárias dos criados de quarto quanto à prole real: “eles deviam ser capazes de prever o destino de uma criança pelo número e localização das manchas em seu corpo, manter o berço longe do luar para não espantar o sono, proibir qualquer pessoa de olhar para a criança enquanto ela dormia (para não estragá-la), passar fuligem atrás da orelha da criança para protegê-la do mau-olhado e, antes de conhecer uma nova pessoa, salpicar um pouco de sal na cabeça sob o chapéu.”

Quarto no Palácio Terem, no Kremlin, Moscow, Russia, por volta de 1870. O palácio foi a principal residência dos imperadores russos no século 17.

Obviamente, nada disso dizia respeito aos procedimentos de saúde que os pequenos tsares precisavam. Por exemplo, atividade física. Em vez de se exercitarem, eles eram forçados a andar sempre devagar e nunca correr ou gritar — já que era algo impróprio para pessoas da realeza.

Eles precisavam de boa alimentação, mas careciam de vitamina C. No século 17, o comércio internacional ainda era muito vagaroso e Moscou, cidade setentrional onde o inverno dura de 7 a 8 meses, frutas frescas eram raras.

A exceção eram as melancias, fornecidas da região do antigo Canato de Ástrakhan, que permaneciam frescas. Mas por motivos nada científicos a Igreja Ortodoxa Russa proibiu o consumo de melancias frescas — já que elas “se assemelhavam à cabeça decepada de João Batista”. Assim, as melancias eram salgadas, o que fazia com que perdessem a maior parte de suas vitaminas.

Realeza doente

Em 1627, Miguel 1°, o primeiro Romanov, queixou-se ao pai: “Meus pés têm dificuldade para andar, me carregam em cadeiras na ida e na volta para a carroça”. Ele tinha apenas 31 anos na época.

Seu neto, Fiódor Alekseevich, também teve a mesma doença e mal conseguia andar, morrendo aos 21 anos. A análise dos restos mortais dos primeiros Romanov, segundo Vera Bokova, mostra que a doença era o raquitismo.

Retrato do jovem Pedro 1° da Rússia.

Pedro, o Grande, foi educado da mesma forma durante os primeiros anos de vida e sua saúde também estava longe de ser perfeita. O que provavelmente o ajudou a melhorar seu sistema imunológico foram os exercícios militares que fez no início da vida. Mas levaria muito tempo para que um novo herdeiro nascesse e fosse criado na família real russa — o século 18 foi repleto de golpes de Estado.

Catarina e a educação inglesa

Em 1754, nasceu Paulo 1°, filho de Catarina e Pedro 3°, grão-duque na época. Quase imediatamente após o nascimento, Paulo foi levado aos aposentos da imperatriz Isabel, sua tia. Paulo era considerado um herdeiro legítimo há muito esperado, o futuro da Rússia, então sua saúde e bem-estar eram uma prioridade de Estado. Mas a própria Isabel foi criada em Moscou à moda antiga e cuidou do bebê Paulo seguindo as mesmas regras retrógradas.

Grão-duque Paulo Petróvitch (1754-1801) na aula.

Como Catarina lembrava: “Ele foi literalmente sufocado por preocupações desnecessárias. Ele ficava deitado em uma sala extremamente quente, com fraldas de flanela, em um berço estofado com pele de raposa preta. O suor escorria de seu rosto e por todo o corpo e, como resultado, quando cresceu, pegava resfriados e adoecia ao menor vento.”

Basicamente, a saúde de Paulo ficou debilitada pelas mesmas razões que a dos primeiros Romanov. Além disso, seu estômago já era debilitado na infância. Ele se recusava a comer, mas as babás o enchiam de comida à força. Ele tinha intolerância à lactose e não gostava de carne — e assim continuou por toda a vida.

Catarina, aparentemente, ficava chocada ao ver o filho perder a saúde tão cedo, mas não podia ir contra as regras da imperatriz Isabel. O que ela fez foi mudar completamente a maneira de criar os próprios netos, Alexandre (nascido em 1777) e Constantino (nascido em 1779), filhos de Paulo com Maria Fedorovna.

Grão-duques Constantino e Alexandre.

Assim como Isabel fez com Paulo, Catarina manteve Alexandre e Constantino sob sua supervisão pessoal. Ela não permitia que enfaixassem ou alimentassem em excesso as crianças. Catarina era uma seguidora do chamado “modo inglês” de educação, com o objetivo de criar cavalheiros saudáveis, e não amores-perfeitos fracos e doentes.

Catarina escreveu sobre seu neto: “A pequena cama do senhor Alexandre, já que ele não conhece o berço ou o enjoo, é feita de ferro, sem dossel; ele dorme em um colchão de couro forrado com um lençol, e tem um travesseiro e uma leve manta inglesa. Desde o nascimento, ele está acostumado a tomar banho diariamente na banheira, quando está saudável.”

Os quartos de Alexandre e Constantino eram aquecidos a apenas 19 graus Celsius e iluminados com algumas velas, e não grandes lustres, para manter o ar fresco.

Vestidos com maiôs de lã, os netos de Catarina brincavam no lago de Tsárskoie Selo, para alegria da avó. Mas, ao mesmo tempo, eles estavam acostumados com o trabalho manual — também uma novidade para a Rússia, onde os nobres costumavam evitar qualquer trabalho físico.

Retrato do grão-duque Alexandre.

Alexandre e Constantino aprenderam a serrar e cortar madeira, pintavam, estofavam, misturavam e passavam tintas, cortavam lenha, aravam, ceifavam, andavam a cavalo... Ao mesmo tempo, os meninos tinha interesse em idiomas, e quando tinha seis anos, Alexandre já falava e escrevia em russo e inglês.

Os meninos não foram separados de seus pais e os viam regularmente. Paulo supervisionava as aulas e práticas militares de seus filhos e Maria Fedorovna, artista e escultora, ensinou-lhes artes e pintura — habilidade que dominaram profundamente.

Quando os caçulas de Alexandre e Constantino, Nicolau e Mikhaíl, nasceram, em 1796 e 1798, respectivamente, eles foram criados do mesmo jeito que os irmãos mais velhos. Assim, os filhos de Paulo, cuja educação foi altamente influenciada por Catarina, tiveram, provavelmente, a infância mais saudável dentre os Romanov.

Tsarskoie Selo em 1777.

Os descendentes seguintes da família Romanov no século 19 tiveram educação parecida com a dos filhos de Paulo. Austeridade, trabalho manual, natação e exercícios físicos estavam no centro deste método. Eis uma programação diária disposta ao poeta Vassíli Jukóvski, que foi o tutor de Alexandre II (filho de Nicolau e então futuro tsar): 

“Levantar às 6 da manhã. Das 6 às 7 da manhã, oração, café da manhã, revisão do dia seguinte; das 7h às 9h, aulas; 9h às 10h, descanso, visitas; 10h às 12h, aulas; 12h às 14h, caminhada; 14h às 13h, almoço; 15h às 17h, descanso, jogos, caminhada; 17h às 19h, aulas; 19h às 20h, ginástica ou jogos; 20h às 21h, jantar; 9h às 10 PM, revisão do dia anterior.”

Assim, as crianças reais eram, provavelmente, as crianças mais ocupadas do império — e seus pobres tutores também!

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