Vátnik, o casaco mais popular da URSS que virou palavrão

História
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Casaco acolchoado era proteção mais barata contra o frio, mas hoje seu nome virou um palavrão tão ofensivo que pode até gerar processo judicial!

Quente, à prova de vento e, o mais importante, barato. Este era o vátnik clássico, um casaco acolchoado recheado com algodão. Na União Soviética, todo o país usava esse tipo de casaco: soldados, estudantes, trabalhadores, prisioneiros, construtores, motoristas etc.

Passado o tempo, o vátnik passou a ser visto como uma peça de roupa “exclusivamente russa”, junto com o “kokôchnik” ou “sarafan”. No entanto, na última década, tornou-se palavrão...

De onde veio o vátnik

Vamos deixar combinar logo de saída: o vátnik não tem nada de nativamente russo. Ele surgiu no país apenas no final do século 19, e devido a diversas circunstâncias.

Esse tipo de casaco foi originalmente inventado na Alemanha pelos Hartmanns, uma dupla de pai e filho que, em 1870, desenvolveu um método para a produção industrial de algodão. Isso deu início a uma revolução global do algodão: o produto começou a substituir outros enchimentos naturais como crina de cavalo, linho, lã etc.

A segunda circunstância que contribuiu para a disseminação do vátnik na Rússia foi a reforma do exército do país. Uma análise da guerra russo-turca de 1877-1878 mostrou que o uniforme de campo existente era pouco prático e quase não resistia ao gelo: milhares de soldados morreram ou passaram a ter deficiências físicas como resultado da hipotermia.

Assim, em 1882, o imperador Alexandre 3° anunciou uma reforma para simplificar, reduzir o custo e aumentar a praticidade dos uniformes militares. O algodão imediatamente entrou em foco e, em 1885, “beshmets” (um tipo de roupa externa) quentes e acolchoados tornaram-se a regra para os cossacos do Cáucaso.

Assim, inicialmente o vátnik se estabeleceu no exército tsarista. Naquela época, passou a ser chamado de “volan” e a ser usado por cocheiros e mercadores. No final do século 19, o “volan” passou a ser recheado com algodão, o que o tornaca mais quente e leve.

Mas este ainda era apenas um protótipo do vátnik. O tamanho do “volan” (que tinha manga comprida e ainda era pesado) o tornava inconveniente para o trabalho físico, enquanto a principal vantagem do vátnik era sua adequação ao trabalho. Assim, a era soviética tornou-se a “idade de ouro” do vátnik.

O casaco do povão

O vátnik provou seu valor durante a Primeira Guerra Mundial. Para produzi-lo, só era preciso máquinas de costura comuns e o baixo custo do material usado tornou possível aquecer milhões de pessoas com vátniks.

Na década de 1930, o vátnik tornou-se obrigatório sob o sobretudo e, e 1942, por decreto, ele suplantou completamente o sobretudo para recrutas e a baixa hierarquia na retaguarda do Exército Vermelho.

A Segunda Guerra Mundial trouxe o vátnik à tona, e não apenas na linha de frente. Ele provou-se inestimável em fábricas frias, em campos ventosos e em campanhas. Foi durante e depois da guerra que o vátnik atingiu o ápice: uma época de megaprojetos de construção, mobilização, recuperação econômica e, ao mesmo tempo, escassez de bens.

O vátnik chegou até a ser padronizado, de modo que as mesmas jaquetas acolchoadas universais fossem usadas por prisioneiros, motoristas, trabalhadores e estudantes. A única diferença era a cor: os vátnik do exército eram cáqui; os civis, azuis, cinzas, pretos ou marrons; os prisioneiros usavam vátnik pretos.

O Cosmódromo de Baikonur, a linha principal Baikal-Amur (com mais de 4.000 quilômetros de extensão), fábricas de automóveis e outras obras de infraestrutura foram todas construídas por trabalhadores vestindo o vátnik.

Apesar de essas jaquetas terem sido originalmente criadas para os propósitos mais pragmáticos, foram feitas tentativas para tornar o vátnik produzido em grandes quantidades mais elegante: as mulheres soviéticas costuravam colares nele, o acinturavam e enfeitavam com bordados.

No final do século 20, o casaco mais popular da Rússia chamou a atenção do Ocidente como um item exótico do “estilo pós-soviético” e foi repaginado por casas de moda famosas e pelo mercado fashionista europeu.

Usado pelo exército por tanto tempo, o vátnik hoje é quase uma coisa do passado que foi substituída por roupas térmicas feitas de materiais modernos. É improvável ver um vátnik clássico em soldados hoje em dia.

Por que “vátnik” virou palavrão?

Na Rússia, a palavra “vátnik” não faz referência apenas à popular jaqueta de algodão. Desde a década de 2010, ela é usada como palavrão para descrever russos ufanistas nas mídias sociais, que exibem uma impressionante ignorância da história, incapacidade de analisar a situação e fé cega em estereótipos, mitos e clichês.

Como observado pelo linguista Maksím Krongauz, a palavra tem uma conotação social, pois a peça de roupa é usada “por camadas mais baixas da sociedade”, e o termo “vátnik” normalmente se refere a pessoas de baixa escolaridade e facilmente influenciáveis, de origem humilde.

A calúnia também se tornou objeto de debate jurídico. Em 2017, um morador de Saratov foi condenado a 160 horas de serviço comunitário por pedir um “holocausto vátnik”. O caso foi aberto sob o artigo 282 do Código Penal Russo, “por menosprezo à dignidade humana”.

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