Para uma nação que está pronta a sediar sua primeira Copa do Mundo daqui a apenas três meses, a Rússia parece, surpreendentemente, muito "pianinho".
A verdade é que o país teme, às escondidas, a performance de sua seleção nacional. Mas nem sempre foi assim. Os nostálgicos relembram os tempos de potência da União Soviética e quando, há apenas uma década, o heroísmo de Andrêi Archavin, mandou a Rússia para as quartas-de-final do Campeonato Europeu aos 116 minutos contra o estrelado time holandês.
Este foi o ápice russo no esporte, quando seus torcedores viram Archavin, Jirkov e Pavliutchenko incendiarem a Primeira Liga Inglesa depois de grandes transações de passes no início do segundo semestre daquele ano de 2008.
Pulamos direto para o Campeonato Europeu de 2016, onde o técnico Leonid Slutski anunciou publicamente sua equipe como uma “merda” após uma derrota de 3 x 0 no País de Gales. Como tudo desandou de repente?
Zona de conforto
Em uma certa manhã de junho do ano passado, um jornalista apareceu com um pedido raro a um presidente Putin muito tranquilão em sua conferência de imprensa televisionada anual: que ele fizesse uma avaliação das falhas de sua equipe nacional. "Quando falo com especialistas eles me dizem que há muitos jogadores estrangeiros", respondeu de forma concisa.
Já havia sido anunciado em 2015 que o número de jogadores estrangeiros na Primeira Liga russa seria restrito a seis por equipe.
A notícia veio apesar do fato de que a Rússia tem uma das ligas menos globalizadas da Europa, com estrangeiros representando apenas 43% dos jogadores (para se ter ideia, no time inglês eles são 66,4%).
Isto faz com que a Rússia lance uma tendência única no caótico mundo do futebol moderno, onde ofertas de um quarto de bilhão de dólares fazem a cabeça dos jogadores da noite para o dia.
Embora seja um esforço nobre, o patriotismo no futebol russo está levando seus jogadores a um caminho nada brilhante.
A chave para entender o fracasso está no fato de que todos os jogadores de destaque da equipe russa atualmente jogam na Primeira Liga da Rússia.
"Os salários na Liga Russa são muito altos, chegando frequentemente aos US$ 4 milhões por ano. Mas, devido ao limite imposto ao número de jogadores estrangeiros, a competição por esses postos não é tão alta", explica Iliá Zubkô, jornalista esportivo da Rossiyskaya Gazeta.
Enquanto o poço de dinheiro jorrando em jogadores como Igor Denisov e Artiom Dziuba os manteve na pátria, isso também criou uma zona de conforto.
Eles não ligam para Londres
É desnecessário dizer que acabaram há muito tempo os dias em que os jogadores russos sonhavam em se mudar para a Inglaterra para melhorar sua carreira.
"Eles sabem que não serão abordados pelos grandes clubes ingleses e não veem motivo para ir para um time de nível mediano, porque o salário é bem menor - mas é preciso trabalhar muito mais para ter a posição", diz Zubkô.
Um caso em questão é o do próprio Archavin. Seu período de quatro temporadas no Arsenal, de 2008 a 2012, não serviu de incentivo para convencer seus compatriotas a se mudar para perto do Big Ben.
Desacostumado com a intensidade da Primeira Liga inglesa, Archavin não conseguiu atingir todo seu potencial, marcando apenas 30 gols em 133 partidas.
O atacante acabou caindo em desgraça com os torcedores do Arsenal devido a sua preguiça e voltou para seu clube de infância, o Zenit de São Petersburgo, deixando quase somente quatro gols contra o Liverpool como lembrança para os torcedores do Arsenal.
O sonho inglês, que antes foi a ambição de todo jogador russo, parecia agora requerer muito esforço. Afinal, se Archavin não consegue, quem consegue?
Ao invés de procurar mais Archavins, o sistema russo incentiva seus melhores jogadores a serem medianos.
Futebolistas como Igor Akinfeev, Alan Dzagoev e Aleksandr Kokorin, todos acostumados com o Manchester United, Everton e Arsenal, respectivamente, optaram, ao longo da carreira, pelo conforto e ficaram na Rússia, vendo seus saldos bancários aumentarem e seus talentos diminuírem.
Mas esses jogadores serão tratados como reis por sua lealdade e entrarão na seleção russa de 23 jogadores em meados deste ano. Com apenas alguns jogos europeus nesta temporada, os craques da Rússia agora estão irreversivelmente aquém da experiência para a grande aposta da Copa.
Restrições da propriedade pública
Enquanto o emigrante russo proprietário do Chelsea, Roman Abramovich, lançou seus bilhões ao clube, times em casa ainda se encontram em uma bizarra luta com a propriedade pública: 31 das 36 equipes nas duas divisões superiores são dirigidas por governos locais ou estatais.
Com um comparecimento médio abaixo das 12.000 cabeças na Primeira Liga russa e direitos de TV que representam apenas 10% dos lucros, o investimento público dá ao Estado um controle sem precedentes sobre os clubes.
Assim, a reforma pública desse sistema nada competitivo não está no topo das prioridades de um país que está saindo da recessão econômica.
"Se uma região precisa cortar gastos sociais, um time de futebol será a primeira coisa em que ela não gastará seu dinheiro", disse Ígor Lebedev, membro do comitê executivo da Federação Russa de Futebol, ao jornal The Financial Times em 2017.
A perspectiva de ter que lidar com o governo tira o glamour da aquisição privada e torna essas equipes pouco atraentes para potenciais compradores não familiarizados com a burocracia russa.
O método francês de aumentar rapidamente a atratividade da liga por meio de investimentos privados precisaria da ajuda de oligarcas da classe de Abramovich e do ex-dono do Anjí Makhatchkalá, Suleiman Kerimov.
Mas com o rublo desvalorizado, isso parece improvável. Tanto Kerimov, quanto Abramovich minimizaram seu envolvimento no futebol russo nos últimos anos.
Preso no sistema
A única saída para a Rússia reside, portanto, em seu sistema juvenil, que tem um problema antiquíssimo com a paciência e o perfeccionismo.
Desenvolver a juventude russa é uma boa para jogadores como Dzagoev e Aleksandr Golovin, que já parecem goleadores mundiais desde a adolescência, mas os agentes são desencorajados, de maneira incompreensível, a experimentar com qualquer um que mostre alguma falha.
O sistema de registro é crucial para esse conservadorismo no treinamento, obrigando os clubes a listar seu primeiro e segundo time no início de cada época de transferência de passes.
Isso impede a migração entre duas equipes e faz com que clubes como o Spartak de Moscou e o Zenit de São Petersburgo, cujas segundas equipes jogam na primeira divisão (o segundo nível russo), não possam convocar seus próprios jogadores da segunda equipe para sua grande chance.
Com os agentes vivendo temerosos de que registrar um jogador seja um desperdício de time, futebolistas jovens que não fazem uma boa partida para o clube logo de cara, muitas vezes, acabam perdidos em anos de mediocridade no segundo time e emprestados.
Tudo isso levanta uma questão: estaria o sucessor de Archavin preso em um clube siberiano de segunda, impossibilitado de sair porque seus documentos de registro não permitem?
Curando as feridas?
De um ponto de vista tático, a pressão do país anfitrião na Copa do Mundo dará ao técnico russo Stanislav Tchertchesov menos pano para a manga em meados deste ano. A missão é clara: a seleção precisa marcar gols e precisará da energia de seus jogadores jovens para fazer isso.
Junho pode já estar chegando, mas depois de adotar a abordagem alemã contemporânea para o desenvolvimento da juventude em 2015, os clubes russos estão, finalmente, dando passos na direção certa.
"O desenvolvimento e a infraestrutura da juventude estão definitivamente melhorando", diz Evguêni Buchmanov, técnico da seleção russa sub-21. “Os principais clubes estão dando mais atenção a talentos individuais. É possível ver isso pelo Anton e pelo Aleksei Miranchuk [do Lokomotiv de Moscou], que subiram de maneira surpreendentemente rápida nos últimos dois anos.”
Tchertchesov também tem uma abordagem renovadora para estimular o talento, que chegou na hora certa, de acordo com Iliá Zubkô.
“Ele adora trabalhar com jogadores jovens e confia muito neles. O jovem Roman Zobnin é um exemplo de destaque - ele foi completamente detonado em sua estreia pelo Dinamo [de Moscou] contra o Napoli, mas Tchertchesov continuou a confiar nele e colocá-lo nos jogos”, disse.
Zobnin e os gêmeos Mirantchuk são apenas alguns dos jovens disputando vaga no time de Tchertchesov em meados deste ano. É difícil saber como eles se sairão, mas como substitutos para veteranos como Denís Gluchakov e Igor Denisov, esses aspirantes podem acrescentar profundidade e energia ao elenco de Tchertchesov.
Caso a linha de frente de Fiódor Smolov e Aleksandr Kokorin repita o desempenho sem brilho do Campeonato Europeu de 2016, Aleksêi Mirantchuk também poderá atuar como atacante após seu gol contra a Espanha em novembro passado.
Impedindo o ataque
A maior preocupação da Rússia vem da defesa, onde ainda há dúvidas sobre quem receberá a humilde tarefa de deter Luis Suárez, Mo Salah e Edinson Cavani em meados do ano. A seleção nacional sofreu seu primeiro grande revés em janeiro, quando o promissor zagueiro do Spartak, Gueórgui Djikia, de 24 anos, rompeu um ligamento em um amistoso.
Os membros mais velhos da defesa, Fiódor Kudriachov e Víktor Vasin, provavelmente substituam Djikia - para o desespero dos torcedores. "Djikia era a última esperança da Rússia, o único defesa de meio decente do time.
Ele está na tabela de classificação estendida para a Copa do Mundo, mas duvido que vá estar por lá", diz o torcedor Nikolai Soloviev, detentor de ingresso na temporada do Spartak.
Se Tchertchesov conseguir que seus jogadores fiquem cheios de energia e marcando gols, a Rússia pode ter uma chance de sair da fase de grupos.
Com uma vitória contra a Arábia Saudita no primeiro dia de jogo e uma luta dura contra o Uruguai, é provável que aconteça um jogo contra o Egito em São Petersburgo em 19 de junho.
Mas se os jogadores russos aprenderam alguma coisa do Campeonato Europeu de 2016, é que eles não têm escolha senão ficar entre as faixas nacionais. Caso contrário, sua desgraça reverberará da Sibéria ao Kremlin.
Sem pressão.
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