Escritos de Vigotski sobre arte saem no Brasil em edição inédita

The Vigotsky Project (CC BY-SA 3.0); Editora Mireveja, 2022
Coletânea é resultado de mais de uma década de pesquisas da professora da UFRJ Priscila Marques e traz textos nunca antes publicados em livro, mesmo no exterior.

Para o pesquisador Anton Yasnitsky, autor de uma “biografia intelectual” de Liev Vigotski (1896-1934), sua produção para periódicos não acadêmicos pouco importa nos estudos de um dos principais nomes da psicologia mundial. 

“Uma parte significativa dos artigos periódicos de Vigotski, por exemplo, dificilmente podem ser considerados ‘artigos de pesquisa’ segundo os padrões atuais: de fato, como ativista social e funcionário médio do governo, Vigotski escrevia artigos pragmáticos, administrativos, resenhas e polêmicas que não eram nada incomuns na imprensa acadêmica da União Soviética nos anos 1920 e 1930, mas bastante incomuns para nós atualmente. Esses artigos não costumavam apresentar estudos empíricos e raramente tocavam em questões teóricas mais profundas, mas tratavam de assuntos de política científica, das bases filosóficas dos estudos marxistas, ou do progresso da atividade acadêmica em determinados locais e organizações. Por motivos óbvios, tais publicações têm apenas interesse histórico”, escreve o pesquisador Anton Yasnitsky, autor de uma “biografia intelectual” de Vigotski.

Esta não é, porém, a opinião da pesquisadora brasileira Priscila Marques, que há mais de uma década se dedica a explorar arquivos relacionados ao ícone da psicologia pedagógica, que reuniu, selecionou, traduziu e comentou esses textos em volume recém-publicado pela editora Mireveja.

“A própria ideia de um conhecimento puramente científico e totalmente inédito, com foco na originalidade da contribuição, sem diálogo com outras teorias e distante de outros tipos de atuação que não a experimental-laboratorial-acadêmica, deixa de fora uma vasta produção cuja importância no processo de produção de conhecimento não deveria ser negligenciada por quem entende que os saberes são construídos socialmente e na interface com diversas esferas da atividade humana”, escreve a organizadora da coletânea.

O volume “Liev S. Vigotski: escritos sobre arte” traz uma série de resenhas críticas sobre literatura, teatro, dança e artes visuais de um dos fundadores da psicologia histórico-cultural, o soviético Liev Semiónovitch Vigotski. O livro vem ainda a preencher uma lacuna na biografia do autor econtempla dois universos, o da ciência e o das artes.

Trata-se de um mergulho de Priscila Marques em bibliotecas e outros arquivos, na Rússia e também na Alemanha, em busca de resenhas críticas e artigos sobre teatro, dança, artes plásticas e literatura publicados por Vigotski em jornais e revistas de Gomel, sua cidade natal. A maior parte desse material jamais foi traduzida para qualquer idioma, e apenas uma parte foi republicada em russo. São textos produzidos entre os anos de 1915 e 1928 que remetem, portanto, aos períodos pré e pós-Revolução de 1917 e correspondem à fase “jovem” do autor – em que pese o fato de ele ter morrido de forma prematura, aos 37 anos, em 1934.

A obra nos apresenta uma visão complementar e multifacetada desse intelectual tão conhecido nos meios acadêmicos. Como aponta Marques, “Vigotski fez da crítica artística seu laboratório científico e da ciência o ponto culminante de sua atuação como crítico de arte”.

Em muitos dos textos, é o próprio Vigotski quem atribui à arte um importante papel no avanço de sua percepção científica. “Apenas sabendo o que é arte seremos capazes de determinar o significado, em seus fenômenos, da economia de forças, da sublimação, da empatia, da unidade na diversidade e muitos outros. Essa é a única tarefa metodológica possível e passível de ser resolvida. Não começar por ela significa começar pelo fim”, escreveu.

Liev Vigotski

Em “Liev S. Vigotski: escritos sobre arte”, Marques descortina um novo ponto de partida para os estudiosos e o público interessado em entender tanto a arte russa (em plena Revolução) quanto os caminhos traçados por Vigotski na psicologia.

“O livro amplia a noção que tínhamos do legado vigotskiano e nos mostra que, definitivamente, é impossível separar as duas etapas na vida desse grande intelectual”, destaca a pesquisadora.

Dostoiévski, John Reed e Revolução

Nos mais de sessenta textos que a coletânea contempla, Vigotski traça um panorama de obras clássicas russas, da literatura, do teatro e da dança, recuperando nomes “basilares do oitocentos, como Liérmontov, Turguêniev, Tolstói e Dostoiévski”, como escreve o prof. de Literatura e Cultura Russa da USP Bruno Gomide em texto de apresentação do livro.

“Explora-se a complexa tessitura de linguagem e metafísica que compõe os textos dos arquissimbolistas Ivánov e Biéli. E chega-se às desavenças produzidas pelo que então era alcunhado de ‘Outubro’ poético e literário: poetas proletários, prometeus do novo palco, prosadores soviéticos de carteirinha, a pugna formalista”, ele diz.

Têm destaque resenhas literárias como a do livro Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed, e textos que refletem sobre as mudanças impostas pela revolução a toda a arte produzida na região.

Em “Teatro e revolução”, por exemplo, Vigotski dispara logo no primeiro parágrafo: “O teatro russo não tem mérito antes da Revolução. Se isso é vergonha ou honra, pode-se discutir, mas é um fato. Basta relembrar o quadro da vida teatral do passado recente para nos certificarmos disso. Trata-se não apenas de que nosso teatro estava, às vésperas da revolução, completamente fora da política, ao contrário do teatro francês, cujo papel político é muito significativo”.

Além de textos publicados em jornais e revistas e também do prefácio escrito para a obra A arte gráfica (Aleksandr Bykhóvski, 1926), o livro traz um manuscrito inédito no qual Vigotski tece críticas contundentes às ideias antissemitas presentes na obra do escritor Fiódor Dostoiévski.

Vigotski examina representações estereotipadas e sem profundidade da figura do judeu na literatura russa e identifica os lugares-comuns, os clichês aplainadores e, em geral, pejorativos, que acompanham a representação do jid (termo depreciativo do idioma russo para se referir aos judeus).

Para Priscila Marques, “o exame desse material mostra dois aspectos muito pouco desenvolvidos nos estudos sobre Vigotski: a preocupação propriamente religiosa e uma preocupação político-nacional, com o debate sobre o lugar do povo judaico na Rússia”.

A tradutora lembra, ainda, que as produções sobre arte de Vigotski foram essenciais, principalmente, no que se refere às análises concretas e ao sistema teórico criado por ele na psicologia da arte. Os últimos dois textos do livro giram justamente em torno desse tema.

Pai da psicologia pedagógica

Liev Semiónovitch Vigotski é considerado um dos mais importantes pensadores soviéticos do século 20. Nascido em 17 de novembro de 1896 em Orsha, cidade na Bielorússia, e descoberto no Ocidente apenas após sua precoce morte, aos 37 anos, foi pioneiro ao relacionar o desenvolvimento intelectual das crianças às condições de vida e interações sociais, além de entender o aprendizado como um processo contínuo de aquisição de controle sobre ações anteriormente passivas.

Ainda estudante na Universidade de Moscou, Vigotski ficou conhecido por ser ativo nos debates relacionados à Linguística, às Ciências Sociais, à Psicologia, à Filosofia e, como vemos neste lançamento, às Artes.

Ele também lecionou Literatura e Psicologia na cidade de Gomel, Belarus, e realizou inúmeras pesquisas sobre Psicologia do Desenvolvimento, Educação e Psicopatologia. É autor de clássicos como “Construção do Pensamento e da Linguagem”, “Significado histórico da crise da Psicologia”, “Psicologia da arte” e A imaginação e a arte na infância”.

 

LEIA TAMBÉM: Os trabalhos formais de famosos escritores russos

Caros leitores e leitoras,

Nosso site e nossas contas nas redes sociais estão sob ameaça de restrição ou banimento, devido às atuais circunstâncias. Portanto, para acompanhar o nosso conteúdo mais recente, basta fazer o seguinte:
Inscreva-se em nosso canal no Telegram t.me/russiabeyond_br

Assine a nossa newsletter semanal

Ative as notificações push, quando solicitado(a), em nosso site

Instale um provedor de VPN em seu computador e/ou smartphone para ter acesso ao nosso site, caso esteja bloqueado em seu país.

Autorizamos a reprodução de todos os nossos textos sob a condição de que se publique juntamente o link ativo para o original do Russia Beyond.

Leia mais

Este site utiliza cookies. Clique aqui para saber mais.

Aceitar cookies