Indicado ao Oscar, ‘Caros Camaradas’ entra no streaming brasileiro

Andrey Konchalovsky/Disney Studios, 2020
Novo filme de Andrêi Kontchalóvski não traz fórmulas fáceis ou maniqueísmos e pode ser interpretado a partir do “lugar de fala” do diretor. Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, entre outros prêmios, título gerou polêmica.

Quem espera ver trabalhadores no novo filme de Andrêi Kontchalóvski “Caros Camaradas: Trabalhadores em Luta” (2020) pode se decepcionar. Apesar de o engano aqui se dever, acima de tudo, à invencionice na tradução brasileira — o título do filme na Rússia, assim como em todos os muitos outros países onde estreou, é apenas “Caros Camaradas” —, a ausência do proletariado neste vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza foi, sim, um ponto questionado pela crítica.

Isso ocorre porque o pano de fundo da trama é justamente a Revolta de Novotcherkassk, ocorrida em 2 junho de 1962, quando o governo soviético abriu fogo contra grevistas de uma fábrica de locomotivas elétricas que se manifestavam. Os protagonistas não são, entretanto, os rebeldes, mas sim uma apparattchik (funcionária do aparelho governamental soviético), Liuda, que trabalha no Comissariado do Povo local, e um membro da KGB que é enviado para lá.

Dessa forma, o octogenário Kontchalóvski, que tem mais de meio século de carreira no cinema, desenvolve a trama, digamos assim, a partir de seu “lugar de fala”: a intelliguêntsia apparattchik-tchekista soviética. Vale lembrar que seu pai, Serguêi Mikhalkóv (1913-2009) foi escritor infantil e autor da letra dos hinos nacionais da União Soviética (incumbido pelo próprio Stálin, que era mencionado naquela versão da letra, eliminada após Khruschov) e da Rússia, além da letra da canção-chiclete que Liuda canta repetidamente no filme, “Vesenni march” (em português, “Marcha Primaveril”, com o refrão “Tovarisch, tovarisch!”, ou seja, “camaradas, camaradas!”). Mas, muito mais que isso, o pai e a mãe do diretor trabalhavam ocasionalmente também para a KGB, assim como seu tio, Mikhaíl Mikhalkóv, que também era um escritor de renome.

Porém, o filme não pode tampouco ser considerado uma ode aos serviços de segurança. Seus personagens são complexos, não há espaço para maniqueísmos: o mesmo funcionário da KGB que envia uma enfermeira à prisão por ter estado na praça da manifestação aconselha Liuda a não entregar a filha, Sviéta, ao governo caso a encontre. A garota pouco aparece no filme, mas é, ela própria, membra do proletariado e, ao mesmo tempo em que quase não é vista, tem papel crucial: tudo, inclusive as dúvidas da devotada funcionária do Partido que é a mãe, gira em torno do sumiço de Sviéta.

As vantagens desses apparatchiki também são expostas. O filme se inicia com Liuda (interpretada pela mulher de Kontchalóvski, Iúlia Vissótskaia, que cresceu em Novotcherkassk) acordando na cama do amante, o chefe casado. Ela pragueja contra o aumento nos preços dos alimentos — o estopim da greve, junto com a intensificação da carga horária dos trabalhadores —, mas sai dali direto para o mercado, onde passa na frente do povo simples e recebe “joias” escondidas: bombons, licor, fósforos... Não é para menos que os trabalhadores amotinados chamam os apparattchiki de “burgueses” quando os cercam no prédio.

Liuda é uma mulher dura. Suas atitudes com o pai e com a filha são rudes, e ela só parece tentar sobreviver. Desde a cama de Loguínov ela defende o antigo ditador: “com Stálin os preços caíam”. A filha, jovem e ingênua, defende Khruschov, tão parceiro de crime do bigodudo líder quanto Béria e todos os outros. Nisso também se revelam as contradições internas de Liuda: ela discute com o chefe na cama, mas repreende a funcionária da venda por tocar no assunto do aumento nos preços, mesmo concordando com ela, como se desse o recado “fique quieta para outros não a denunciarem” (daí se infere que a protagonista é uma personagem dela mesma — já não é Iúlia Vissótskaia quem interpreta, mas a propria Liuda que adere a um papel pela vida afora para poder viver e deixar viver); na reunião de emergência do Partido, ela pede duras condenações aos revoltosos, mas, ao invés de correr, como outra manifestante, tenta salvar uma moça ferida no salão da cabeleireira; ela condena o pai — que manda tudo às favas, veste seu uniforme de cossaco com três fitas de São Jorge da Primeira Guerra (a cidade foi palco da contrarrevolução cossaca contra os bolcheviques até ser tomada pelo Exército Vermelho, em 1920) e coloca uma imagem da Virgem na mesa —, mas acaba ela mesma chorando e rezando a Deus no chão de um banheiro, pedindo para a filha estar viva. Mais tarde, é a própria Liuda quem explica sua questionável devoção ao aparato: “Se não for acreditar no comunismo, vou acreditar em quê?”

Tudo é volátil, passageiro, mutável, naquela União Soviética do chamado “Degelo”, e assim são os sentimentos e opiniões das personagens. Um chefe da KGB, ao mesmo tempo em que explica métodos de extermínio, reclama do governo e mostra ao funcionário uma tatuagem de “zek” (prisioneiro, político ou comum). Todos se confessam, exprimem suas dúvidas e incertezas. As desconfianças revolvem e convulsionam na pequena cidade às margens da confluência entre os rios Tuzlov e Aksai, que desembocam no Don. Mas, como acaba dizendo o pai de Liuda, desiludido e um tanto embriagado, “não existe Deus no Don”: até pouco antes do final da Perestroika (1985-1991), quando documentos secretos foram abertos ao público, pouco se sabia no resto da Rússia sobre a Revolta de Novotcherkassk.

“Caros Camaradas: Trabalhadores em Luta” (2020) entrou em exibição no circuito russo em novembro de 2020 e foi o indicado do país ao Oscar. Agora ele estreia no Brasil nas plataformas de streaming Looke, Now e Apple TV.

 

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