O verdadeiro desafio para os cineastas russos era abordar o tema da guerra nas telonas sob uma perspectiva diferente, mostrando o desastre humano que o conflito havia causado.
A guerra deixara um buraco no coração das pessoas, para além dos ferimentos físicos. Para combater fogo com fogo, as pessoas precisavam passar por uma catarse enquanto assistiam aos filmes de guerra – ouvir os gritos de seus irmãos mortos e curar suas almas feridas.
Reunimos abaixo uma lista dos filmes de guerra que ajudaram a olhar para a Segunda Guerra Mundial sob uma ótica distinta, através dos olhos de heróis e traidores, pais e filhos.
[Traidores vs. heróis]
A obra-prima em preto e branco de Aleksêi Guerman foi filmada em 1971, mas viu a luz do dia apenas 15 anos depois – por uma simples razão. Este longa não convencional foi ambientado em 1942, durante a ocupação nazista da URSS, e colocou os holofotes sobre os soldados soviéticos que desertaram voluntariamente para o lado inimigo.
Um dos melhores filmes soviéticos sobre a Grande Guerra Patriótica tocou em um tema polêmico que ainda era tabu. Logo após assistir a “Julgamento na Estrada”, o presidente do Comitê Estatal de Cinematografia da URSS, Aleksêi Romanov, certificou-se de que a fita contendo o filme permanecesse na prateleira por anos. O longa foi considerado antipatriótico, e seu diretor acabou sendo acusado de desconhecer a realidade da vida dos partidários.
O drama de Aleksêi Guerman, baseado no romance de seu pai ‘Operação Feliz Ano Novo’, se concentra no sargento Lazarev (interpretado por Vladímir Zamánski) – um “traidor” que desertou para os alemães, mas depois se rendeu aos partidários soviéticos para se redimir por seu ato. O chefe do destacamento, Ivan Lokotkov (interpretado por Rolan Bikov), quer genuinamente acreditar no desertor e confia a ele a tarefa impossível de roubar um trem alemão cheio de comida para ajudar a alimentar os soldados soviéticos famintos.
“Julgamento na Estrada” explora valores humanos e extremos morais, pintando um quadro totalmente diferente dos soldados soviéticos regulares em guerra. Este filme retrata pessoas que não são traidores nem patriotas nas florestas cobertas de neve devastadas pela guerra. Todos são apenas seres humanos sujeitos a erros fatais.
[Drama humano]
Este drama dirigido por Grigóri Tchukhrai não é um filme de guerra comum. Não possui efeitos especiais, cenas épicas de combates ou situações gloriosas. Em contrapartida, oferece um retrato diferente do conflito, optando por histórias humanas.
O diabo está nos detalhes, e os detalhes que vêm à tona em “A Balada do Soldado” falam muito sobre a guerra. Vê-se o rosto mal-humorado de um soldado de uma perna só com medo de voltar para sua esposa; trens cheios de soldados alegres, porém exaustos; uma jovem órfã. O aparentemente pequeno drama humano, ambientado em 1942, mostra mais do que parece. Ele escancara o alcance da tragédia melhor do que grandes filmes de guerra. Sem final feliz.
O protagonista é um operador de rádio de campo chamado Aliocha Skvortsov, que acaba por derrubar dois tanques alemães. Como recompensa, ele obtém um breve período de férias. Aliocha segue então para sua aldeia natal, pois deseja ver sua mãe. O jovem soldado encontra todo tipo de gente no caminho para casa e até se apaixona antes de chegar ao destino final, ainda que por pouco tempo. De volta para casa, ele abraça sua mãe uma última vez. “É hora de eu ir”, diz. “Não vou deixar você ir”, ela chora, talvez sentindo que o filho não voltará.
A “Balada de um Soldado” recebeu críticas positivos de cinéfilos mundo afora, vencendo o BAFTA como Melhor Filme de Qualquer Nacionalidade. Também foi nomeado para o Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original.
[Sob uma perspectiva infantil]
Abundante em sutilezas e nuances, a estreia de Andrêi Tarkóvski nas telonas é um filme dentro de um filme, justapondo momentos de partir o coração durante a guerra e da vida pacífica antes do conflito.
A história segue um menino que perdeu a mãe, a irmã e o pai na guerra. Desesperado por vingança, Ivan (interpretado por Nikolai Burliaev, a futura estrela de ‘Andrei Rublev’), de 12 anos, torna-se literalmente um “filho da guerra” ao voluntariamente se juntar a um grupo de partidários e arriscar sua vida realizando perigosas missões de reconhecimento para o Exército soviético. Filmado em preto e branco e repleto de sequências de sonhos alucinantes e flashbacks assustadores, “A Infância de Ivan” mostra um lado catastrófico da Segunda Guerra, através dos olhos de uma criança. Os sonhos surreais de Ivan, como orações não respondidas, tornam-se a única ponte que conecta o menino com seu passado distante e feliz.
Não é à toa que esta obra-prima de Tarkóvski conquistou o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza e o prêmio Golden Gate no Festival Internacional de Cinema de São Francisco. A “Infância de Ivan” emocionou os mestres da cinematografia Ingmar Bergman e Krzysztof Kieslowski, e o filósofo francês Jean-Paul Sartre até escreveu um ensaio sobre o assunto. Tarkóvski, por sua vez, não gostou de seu próprio filme, dizendo que “A Infância de Ivan” só era bem quista a seus olhos por ser sua “primeira obra independente”.
[Raízes da violência]
Este é o primeiro documentário soviético a falar sobre morte, violência e tortura. “Fascismo de Todos os Dias” é antes de mais nada uma crônica aprofundada dos horrores e origens do fascismo, e não uma história clássica do bem contra o mal.
O aclamado diretor Mikhail Romm lançou uma bomba ao expor o sistema totalitário da União Soviética e os crimes da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial em seu documentário, traçando paralelos entre os dois males mortais.
“Fascismo de Todos os Dias” foi coescrito por Maia Turôvskaia e Iúri Khaniutin e é narrado pelo próprio Romm. Ao contrário de seus colegas cineastas, que costumavam glorificar a experiência de guerra heroica da URSS, eles optaram por ampliar os limites do desespero humano com um filme profundamente perturbador.
O documentário, repleto de imagens lúgubres, extraídas dos arquivos nazistas, bem como do arquivo pessoal de Hitler, é um olhar duro sobre a violência. O Holocausto nazista custou a vida de seis milhões de judeus, e Romm utilizou todos os recursos visuais disponíveis, desde música às imagens de arquivo, para rastrear as origens da tirania e da decadência.
[Preço da Vitória]
O longa épico “Eles Lutaram pela Pátria”, de Serguêi Bondartchuk se destaca não apenas por sua qualidade artística e estilo visual, mas sobretudo pela estranha autenticidade.
Este filme de guerra ‘com G maiúsculo’ tem de tudo: sangue, suor, emoção e até linguagem impróprio (algo até então inédito no cinema soviético). Baseado no romance homônimo do vencedor do prêmio Nobel de literatura Mikhail Chôlokhov, a produção de Bondartchuk retrata a complexidade das pessoas e a simplicidade da amizade, a amargura da guerra e o poder da inteligência e do humor, a sede insaciável pela vida e a medo da morte. É provavelmente o primeiro longa mais sincero sobre a Segunda Guerra Mundial, feito do ponto de vista de quem realmente participou dela.
A história se passa em julho de 1942. Já exaustos, os soldados soviéticos estão travando batalhas ferozes e sofrendo enormes perdas nos arredores de Stalingrado. O enredo se concentra em soldados comuns, suas amizades, o amor pela pátria e o preço da vitória.
Bondartchuk, o homem também por trás da adaptação de “Guerra e Paz”, lançou o filme para marcar os 30 anos desde a vitória sobre os nazistas, e a maioria dos atores que estrelaram no filme (incluindo Iúri Nikúlin e o próprio Serguêi Bondartchuk) haviam sido soldados da linha de frente. Isso conferiu ao filme um toque ainda mais autêntico.
Como se sabe, a União Soviética fez os maiores sacrifícios para derrotar os nazistas. A vitória teve um preço alto. Pelo menos 27 milhões morreram durante os confrontos. Porém, entre 1947 e 1964, os custos e consequências da Grande Guerra Patriótica não eram discutidos publicamente na URSS. Milhões não viveram para ver a vitória sobre o nazismo – e nem puderam perceber que sua morte se tornaria um feito extraordinário de resistência e coragem. “Eles Lutaram pela Pátria” ajudou muitas pessoas a entender sacrifício.
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