Ainda existe paganismo eslavo?

Cultura
GUEÓRGUI MANÁEV
Neopaganistas russos contemporâneos reconstroem sua religião. Mas até que ponto ela é genuína? E o quanto ela está alinhada ao pensamento de direita?

Um grupo de pessoas vestindo roupas variadas em estilo étnico se reúne em torno de um monte de galhos secos.

“Quando falamos com os deuses, erguemos as mãos ao céu, mas não porque eles estejam no céu. Eles estão em nossos corações”, diz o “mago”, um jovem de cavanhaque frágil e cabelo loiro, que exibe símbolos solares em sua camisa feita à mão.

“Nós estamos na Mãe Terra e nos dirigimos ao Pai Céu, e apontamos com a mão, diretamente de nossos corações, para o sol, mostrando o nosso caminho…”, diz o mago fazendo em seguida uma “saudação romana”.

Isto tudo é parte de uma celebração neopagã organizada por russos contemporâneos. "Glória a Svarojitch, o Deus do Fogo!", exclama outro mago. Todos repetem: "Glória!". Alguém bate em um tambor de pele, e outra pessoa afina uma guitarra. A pilha de galhos está em chamas.

Este é um ritual dedicado aos deuses do fogo (Svarojitch) e do sol (Iarilo). Mas os ritos, as palavras e as roupas são todas inventadas por eles mesmos. Então o paganismo russo contemporâneo tem raízes históricas ou é só invenção?

Os poucos escolhidos

Atualmente, existem 10 organizações religiosas pagãs oficiais na Rússia. O números de seguidores do paganismo é alto em regiões como Altái, Iakútia e a República de Tuva, onde supera os 13%. Mas estes cultos xamânicos locais não estão ligados ao paganismo eslavo.

O neopaganismo eslavo começou a surgir na Rússia nos anos 1980. Gurus como Mago Velemudr ou Mago Veleslav começaram a organizar celebrações de festas antigas eslavas, como a Máslenitsa  e o Ivan Kupala.

Os seguidores do neopaganismo eslavo se autointitulam “rodnoviêri” (seguidores da fé nativa eslava) e sua primeira organização religiosa oficial foi registrada em 1994. Atualmente, uma das comunidades mais influentes de “rodnoviêri” é a União de Comunidades de Crenças Nativas Eslavas. Ela foi criada em 1997 e hoje é composta por vários grupos neopagãos locais de toda a Rússia, principalmente da região central.

Mas além desses, há muitos simpatizantes e aspirantes a pagãos. O VKontakte, a maior rede social da Rússia, tem um grupo chamado "Eslavos. Paganismo. Rus” com mais de 250 mil membros. A página é dedicada aos fãs do mundo eslavo antigo, e tem posts sobre crenças místicas, princípios eslavos da vida e imagens motivadoras.

Elizaveta Orlóva, administradora oficial do grupo, diz ser uma “crente no paganismo”, mas pratica a fé principalmente sozinha. “Não faço ritos todos os dias porque tenho poucos crentes com que me identifico. Periodicamente, faço um reforço do poder com elementos e também uso runas para propósitos diversos”, diz.

A memória dos parentes

Os neopagãos têm diversas fontes para reconstruir as crenças e os rituais que praticam. Vladímir Koval, doutor em história e chefe do departamento de arqueologia da Idade Média no Instituto de Arqueologia da Academia Russa de Ciências afirma que a única fonte que nos conta sobre o paganismo eslavo pré-cristão são as crônicas.

“Não existem ou são discutíveis os dados arqueológicos sobre o paganismo eslavo. Sabemos sobre os rituais funerários [cremações], mas até aí tudo é questionável. Eslavos orientais antes do ano de 988 eram, sem dúvida, pagãos. Mas eles não deixaram monumentos grandiosos como Stonehenge”, diz Koval.

O problema das crônicas está no fato de elas terem sido redigidas algumas centenas de anos após a adoção do cristianismo e escritas em mosteiros ortodoxos – ou seja, elas são, sem sombra de dúvidas, tendenciosas.

“Há, realmente, muito poucas fontes, mas as pessoas têm a memória de seus parentes e se lembram de algumas coisas. Às vezes, recebemos dicas dos poderes superiores. Eu não ousaria chamá-los de deuses, porém”, diz Elizaveta.

Pelo menos um deus eslavo é conhecido: Perun, o Trovejante. Mas nenhum de seus santuários foi descoberto.

Até recentemente, a imagem do 'Zbrutch', uma escultura de pedra que representa quatro deuses eslavos, era a mais proeminente descoberta arqueológica relacionada ao paganismo eslavo, mas, em 2011, os historiadores ucranianos Aleksei Komar e Natalia Khamaiko demonstraram provas sólidas de que a escultura era uma falsificação do século 19. Uma análise da pedra revelou que ela é muito mais nova do que uma do século 10, ao qual ela deveria pertencer.

Santuários vandalizados

A Igreja Ortodoxa Russa é firmemente contrária ao neopaganismo eslavo. O ex-patriarca (equivalente da Igreja Ortodoxa Russa à figura do Papa para a Igreja Católica) Aleixo 2° condenou o paganismo em 2004, comparando-o ao terrorismo. Em 2014, o patriarca Kirill alertou sobre “tentativas perigosas de reconstruir crenças pagãs pseudo-russas”.

Cristãos comuns, ou pessoas que dizem sê-lo, destruíram os santuários criados por neopagãos. Elizaveta afirma que algumas pessoas picharam a Pedra Azul, objeto que os pagãos acreditam ser de culto.

Em 2017, imagens de madeira na floresta do parque de Tsaritsino, em Moscou, foram vandalizadas - queimadas e cortadas com um machado. A partir daí, os crentes pagãos locais fizeram uma vaquinha para a construção e proteção de novas imagens.

"Este santuário não pertence a nenhuma congregação! Este é um santuário do povo que qualquer pessoa com boas intenções pode visitar!", lê-se na página oficial do santuário.

Nikita, que visitava frequentemente celebrações neopagãs, diz que tais santuários podem ser usados ​​para “sacrifícios” reconstruídos.

“Não há uma lista comum de orações, feitiços ou coisa que o valha: o padre faz um discurso falando sobre os lugares nativos, a Terra Nativa e os objetos naturais próximos, como rios ou lugares memoriais ligados a ancestrais. O discurso é inventado por quem o profere e ninguém faz objeção, porque a visão do mundo é a mesma para todos na celebração. O rito em si consiste, por exemplo, em cortar carne comprada em uma mercado com uma faca cerimonial e enterrá-la no chão. Este é um presente para os deuses. Ou eles podem matar uma ovelha e queimá-la em um incêndio ritual”, diz Nikita.

Algumas organizações neopagãs, no entanto, foram proibidas na Rússia – e isto não aconteceu por motivos religiosos.

“Essas pessoas são muitas vezes têm uma atitude feroz contra o governo. Muitos deles veem a Rússia contemporânea com receio, eles acham que os judeus tomaram o país, que é necessário construir um Estado nacional russo e assim por diante ”, diz Nikita.

A Igreja Ortodoxa Russa, na opinião deles, também é alheia aos russos. Essas pessoas arrogantemente se colocam à parte de todos os outros "russos".

"Muitas pessoas se afastam de suas famílias e amigos, por isso a adoção do paganismo não passa despercebida. Cerca de 50% dos nossos membros são pessoas de direita. E isto gera problemas, porque às vezes somos comparados ao Terceiro Reich!”, diz Elizaveta.

É muito improvável que antigas crenças pagãs eslavas estivessem ligadas à ideia de supremacia racial. Essas crenças nasceram nos territórios que hoje compõem a Ucrânia, já que os achados arqueológicos mais relacionados ao paganismo estão ali.

Mas, segundo Vladímir Koval, agora é hora de reconsiderar o que sabemos sobre o passado russo.

“Hoje, a arqueologia russa está na desconfortável fase de reavaliar suas antigas visões fantásticas sobre o paganismo. Arqueólogos soviéticos deram a preferência não aos fatos, mas a hipóteses baseadas em suas conjecturas. Por isso, reconsiderá-los é um estágio necessário da pesquisa histórica”, diz.

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