Por que as versões russas de personagens infantis fazem mais sucesso que originais?

Pinóquio e o Mágico de Oz são alguns dos protagonistas que passaram por processo de ’russificação’.

Na literatura infantil soviética, versões modificadas de clássicos estrangeiros fizeram – e ainda fazem - mais sucesso que meras traduções. Tanto, que algumas personagens famosas passaram por uma “russificação” completa.

Muitas obras-primas da literatura infantil ocidental chegaram à Rússia em um formato totalmente diferente de seus originais.

“O ursinho Puff”, “Mary Poppins”, “Alice no País das Maravilhas” e até “Robson Crusoé” tiveram esse destino.

Em alguns casos, as versões se tornaram tão populares quanto as histórias em que foram inspiradas. O Russia Beyond compilou uma lista dos principais personagens estrangeiros que ganharam vida e fama fazendo as vezes de russos:

Dr. Dolittle e seu equivalente russo, Dr. Aibolit

Dr. Aibolit, segundo autor, foi criado antes de Dr. Dolittle.

Tudo começou com Kornêi Tchukóvski e seu “Dr. Aibolit”, que quer dizer algo como “Dr. Ai, Como Dói”.

O Dr. Abybolit é inspirado na criação de Hugh Lofting, Dr. Dolittle, mas Tchukóvski afirma que teve a ideia de escrever a história de um médico sozinho.

Em um artigo intitulado “Como escrevi a história do doutor Aibolit”, o escritor soviético declarou: “Pensei nessa história ainda antes da Revolução Comunista, porque conheci o verdadeiro doutor Aibolit, que vivia em Vilnius (atual capital da Lituânia)”.

“Seu nome era Dr. Shabad. Ele era a pessoa mais gentil que conheci em toda minha vida. Tratava as crianças pobres de graça. As crianças não o procuravam apenas para se tratar, mas também levavam seus animais de estimação doentes. Então pensei em como seria maravilhoso escrever uma história sobre esse tipo de médico”, completou.

Mas Lofting colocou sua ideia no papel antes, e Tchukóvski acabou adaptando a história do autor britânico.

“Quando estava adaptando sua bonita história para as crianças russas, batizei o protagonista de Dr. Aibolit e acrescentei dúzias de elementos reais a minha adaptação que não faziam parte do original”, disse o Tchukóvski em um artigo intitulado “Memórias de um velho contador de histórias”.

A adaptação foi publicada em russo em 1924, apenas um ano antes do primeiro poema de Tchukóvski sobre o Dr. Aibolit aparecer.

O poema marcou o início das aventuras do bondoso médico contra o vilão Barmalei. A trama se parece com a história de Lofting em alguns aspectos, mas o autor soviético a adaptou a seu estilo, e as crianças soviéticas se apaixonaram por seu trabalho.

Pinóquio e seu irmão gêmeo, Buratino

Buratino ou Pinóquio?

“A Chave de Ouro ou As Aventuras de Buratino” é um dos contos infantis mais populares da União Soviética.

Somente na era soviética, ele foi publicado 182 vezes, com uma circulação total de 14,5 milhões de cópias.

Foi publicado pela primeira vez em 1936, no jornal “Pionêrskaia Pravda”, a principal publicação infantil da era soviética.

Tudo começou com uma tentativa de tradução. O escritor Aleksêi Tolstói – parente distante de Lev Tolstói – deixou que os heróis de “As aventuras de Pinóquio” surgissem da ponta de sua caneta.

Em 1935, Tolstói escreveu a Maksim Górki: “Estou trabalhando em Pinóquio. Primeiro, queria apenas escrever a história de Collodi em russo, mas então abandonei a ideia porque era muito chata e sem graça. Estou escrevendo sobre o mesmo tema a minha própria maneira”.

Tolstói não apenas mudou o nome de Pinóquio para Buratino. Seu personagem não queria ser um menino de verdade – ele permaneceu sendo um alegre boneco, e seu nariz não ficou maior, como o de seu colega italiano.

Gepetto, o bondoso criador do boneco na história original, se transforma no tirano Karabas Barabas na versão de Tolstói.

O boneco foge de Karabas Barabas e, após passar por muitas aventuras, encontra um teatro onde pode viver sob as próprias regras. A chave de ouro, símbolo principal da história, abre a porta deste lugar especial.

As crianças soviéticas adoraram “A Chave de Ouro”, que tem muito menos filosofia e muito mais ação, e um final mais feliz que sua versão ocidental.

Os adultos também gostaram da história, com suas metáforas e jogos de palavras, além de seus personagens facilmente reconhecíveis.

As meninas soviéticas sonhavam em se vestir como a boneca Malvina nas festas de Ano Novo. Na versão de Collodi, ela é uma fada com cabelo azul.

O próprio Buratino se tornou uma marca e emprestou o nome para uma água mineral muito popular.

Sua história foi contada em adaptações para o cinema e versões de fanfic, e surgiram até doces inspirados na Chave de Ouro.

O velho Hottabitch, o gênio feliz

O velho Hottabich e o Gênio.

Transformar um velho gênio em um cidadão soviético? Por que não? Lazar Laguin, o ex-editor-chefe da principal revista satírica da URSS, a “Krokodíl”, decidiu enfrentar o desafio.

“Tentei imaginar o que aconteceria se um gênio fosse resgatado do cativeiro por um garoto soviético comum, um entre muitos em nosso feliz país soviético”, disse o autor.

O gênio de Laguin se adapta à vida no Estado soviético, enquanto tenta ser útil a seu libertador, o pioneiro ideologicamente puro Volka.

Em suas aventuras, o gênio visita um circo, vai a um jogo de futebol, pilota um barco e passa por situações ridículas.

O viés de propaganda na história de Laguin impediu que ela se tornasse um clássico da literatura infantil russa, mas na época em que foi lançada, ela divertiu muitas crianças em todo o país.

No prefácio, Laguin faz referência a histórias como “As mil e uma noites” e “Aladin e a lâmpada mágica”, esquecendo de mencionar a obra do britânico Thomas Anstey “A Garrafa de Latão”, que claramente inspirou o trabalho de Laguin, tanto em termos da trama quanto em detalhes das cenas.

“O velho Hottabitch” foi publicado pela primeira vez em 1938, no jornal “Pionêrskaia Pravda”, e depois foi republicado em uma edição separada.

Laguin reescreveu a obra e transformou-a em filme em 1955, o que tornou a personagem muito popular.  

O Mágico da Cidade de Esmeralda

O Mágico da Cidade de Esmeralda e O Mágico de Oz.

Reza a lenda que o professor Aleksandr Volkov teria lido “O Mágico de Oz”, de L. Frank Baum, com o intuito de melhorar seu inglês.

Mas ele ficou tão encantado com o livro que começou a contar a história para os filhos ainda antes de decidir traduzi-la.

A tradução fez com que Volkov criasse sua própria versão da história, que então enviou a Samuil Marchak, o editor-chefe da maior editora de livros infantis da Rússia.

Quando o filme “O Mágico de Oz”, vencedor do Oscar, foi lançado nos Estados Unidos, em 1939, a versão russa do livro foi publicada na URSS pela primeira vez.

A primeira edição contém o modesto aviso “Baseada na história de L. F. Baum”, mas o livro é idêntico ao original em diversos aspectos.

Na versão russa, no entanto, o nome de Dorothy é Ellie, e seu cachorro, Totochka, pode falar.

Além disso, há cenas que não aparecem na versão original. As versões seguintes foram ficando cada vez menos parecidas com o livro de Baum e passaram a ser publicadas sem referência à fonte.

“O Mágico e a Cidade de Esmeralda” fez tanto sucesso que Volkov começou a receber pedidos de leitores para continuar a série.

Vinte e cinco anos após o lançamento do primeiro livro, ele escreveu outras cinco obras, que, com a exceção de alguns detalhes, não se parecem em nada com as histórias de Baum.

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