É verdade que Ivan, o Terrível, cegou os arquitetos da Catedral de São Basílio?

Russia Beyond (yulenochekk/Getty Images; Víktor Vasnetsov/Galeria Tretiakov)
Reza a lenda que o primeiro tsar da Rússia, Ivan, o Terrível, cegou os arquitetos da catedral mais famosa do país para que eles não pudessem mais construir templos semelhantes em outros lugares. Segundo diversas fontes históricas descobertas recentemente, porém, a catedral da Praça Vermelha foi construída por um único arquiteto — que manteve a visão depois do projeto.

Até a década de 1950, historiadores russos acreditavam na hipótese de que a Catedral da Intercessão da Santíssima Virgem no Fosso (mais conhecida como Catedral de São Basílio) tivesse sido construída por dois arquitetos, Postnik (em alguns documentos Posnik) e Barma. No entanto, eles descobriram recentemente que essa ideia tinha se baseado, provavelmente, no erro de um escriba.

Por que se acreditava que havia dois arquitetos?

Construção da catedral. Século 16.

Em 1957, o historiador Nikolai Kalínin, da cidade de Kazan, publicou no jornal de "Arqueologia Soviética" o documento que deu origem a esse mito. Em uma coleção manuscrita de lendas, redigidas em diferentes caligrafias do final do século 17 e início do século 18, há uma “Lenda sobre a transferência da imagem milagrosa de São Nicolau”. Trata-se de um ícone presenteado pelo tsar russo (título também grafado como "czar" em português) Ivan, o Terrível, para a catedral, que tinha sido recém-construída em 1556.

Desse texto, cuja data e autor são desconhecidos, constam as seguintes frases: “o tsar construiu [...] uma igreja de pedra, perto da ponte e dos portões Frolóvski [nome atual portões Spásskie do Kremlin] sobre o fosso. E Deus concedeu [ao tsar] dois mestres russos, Postnik e Barma, que eram sábios e convenientes para um negócio tão maravilhoso".

Nesse texto, antes dos nomes dos arquitetos, encontram-se as palavras em russo antigo "po réklu", que, segundo o historiador Nikolai Kalínin, significam "sobrenome" ou “conhecido sob o sobrenome de".

No idioma russo antigo essa expressão era usada antes de mencionar o sobrenome de uma pessoa, mas nunca antes de nomes próprios. Assim, os historiadores perceberam que deve ter havido algum erro no registro. "Postnik" era definitivamente um nome próprio, porque informações sobre esse arquiteto podem ser encontradas em vários outros documentos.

O muro do Kremlin de Kazan, provavelmente construído por Postnik Barma.

Postnik Iákovlev e Barma são a mesma pessoa?

Em 1555, o arquiteto Postnik Iákovlev foi contratado para construir o Kremlin de Kazan. O tsar ordenou: “O mestre de fortalezas e igrejas Posnik Iákovlev [...] tem que construir até a primavera, em Kazan, uma nova fortaleza de Kazan, de pedra [...] Ele pode escolher 200 mestres de obra de Pskov, [...] ou tantos quantos sejam necessários".

Além disso, há outro texto sobre a construção da Catedral da Intercessão da Santíssima Virgem no Fosso que data de meio século antes. É a "Crônica Russa desde o início das terras russas até a ascensão ao trono do Tsar Aleksêi Mikhailovitch [também grafado como Aleixo da Rússia]", escrita na primeira metade do século 17.

“No mesmo ano [1560] por ordem do tsar e soberano e grão-duque Ivan, uma igreja foi concebida [..] no fosso, e o mestre era Barma e seus camaradas”, lê-se na crônica. Segundo esse documento, a Catedral foi construída por um único arquiteto, chamado Barma.

Os historiadores encontraram informações que indicam que Postnik Iákovlev e Barma são a mesma pessoa. Em 1633, em uma cópia manuscrita do Sudebnik de 1550 (o principal código legislativo da Rússia), foi feita uma anotação de que, em 7141 desde a criação do mundo (pelas contas atuais, no ano de 1633 depois de Cristo), um funcionário do mosteiro Solovéstski e militar de Moscou chamado Drujina entregou a cópia do Sudebnik a Ivan Maksimov.

Drujina escreve que Ivan Maksimov é o filho de Taruta, que era filho de Posnik, conhecido como Barma. Segundo o historiador Nikolai Kalínin, o avô de Ivan é o famoso arquiteto da Catedral.

Isso é bastante lógico, segundo a anotação no livro: o neto de Postnik Barma ocupa uma posição bastante alta na sociedade e trabalha nos tribunais de Moscou.

O arquiteto da Catedral foi cegado?

É pouco provável que uma pessoa tão respeitada como Postnik Barma tenha sido privada de visão após o trabalho realizado. Segundo fontes históricas, ele continuou a trabalhar após a construção da Catedral de São Basílio na cidade de Kazan.

Além disso, na cópia do "Sudebnik", que provavelmente pertencia ao neto de Postnik, o arquiteto era conhecido e respeitado mesmo após sua morte. Assim, é improvável que ele tenha sido cegado ou punido pelo monarca russo.

De onde veio a lenda sobre a cegueira?

A lenda sobre o "arquiteto cego" não tem análogos na história da Rússia. Assim, os historiadores afirmam que ela é de origem europeia. Na Rússia, essa lenda foi mencionada pela primeira vez no século 17, mas se tornou popular no século 20, por meio do poema "Arquitetos" (1938), do poeta patriótico soviético Dmítri Kédrin.

Nele, figuram os versos: "E o benfeitor perguntou: ´Podem fazer outro templo ainda mais bonito, mais magnífico do que este?´ Sacudindo os cabelos, os arquitetos responderam: ´Podemos! Dê a ordem, Senhor!´ e se curvaram aos pés do tsar. Então o tsar ordenou que esses arquitetos fossem cegados, para que em sua terra essa igreja permanecesse como a única, para que nas terras de Suzdal, e nas terras de Riazan, e nas outras terras não houvesse um templo melhor do que a Igreja da Intercessão."

O leitor geralmente tende a acreditar em histórias bonitas e assustadoras, e as histórias rimadas são ainda mais convenientes para o imaginário popular. Portanto, não é de surpreender que, no século 20, após a publicação do poema, a lenda sobre a cegueira do arquiteto tenha ganhado um novo sopro de vida.

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