Quem eram os proprietários de empresas privadas na URSS?

Russia Beyond (Foto: Sputnik; B. Kolesnikov/Sputnik; Nikolai Nikítin/Tass)
Por muito tempo, todos os empresários privados foram declarados "inimigos de classe" na URSS. Mas isso não levou à morte de absolutamente todos os negócios privados e ainda existiam empresas particulares sob o sistema comunista.

A Revolução de 1917 acabou por algum tempo com o comércio privado. Os bolcheviques declararam que empresários de todos os tipos eram uma velharia do sistema burguês contra a qual todo o povo russo deveria lutar ferozmente. No entanto, essa proibição não durou muito.

Era possível ter um negócio na URSS?

O mito de que o comércio privado foi completamente proibido pelos comunistas não é totalmente verdade. Durante os 69 anos de história soviética, empresários tiveram uma “época dourada” logo após o estabelecimento do sistema comunista.

1921-1925, crianças abandonadas em Moscou entre as filas de vendedores ambulantes na Praça Smolenskaia.

Exaurida devido às revoluções e à guerra civil, a Rússia Soviética enfrentava a crise industrial, a fome, o desemprego e o crescimento da criminalidade. Assim, o governo propôs ressuscitar a economia do país por meio de reformas e foi adotada a NEP (Nova Política Econômica, na sigla em russo).

Essas medidas não apenas permitiam o estabelecimento de negócios privados, como também ofereciam isenções e benefícios fiscais a seus proprietários. Assim, o governo teve que esquecer temporariamente as lutas ideológicas para garantir crescimento econômico e evitar um perigoso descontentamento da população.

Em 1921, por exemplo, os camponeses receberam o direito de vender grãos que sobravam depois de pagar os impostos — o que era um forte incentivo para que produzissem mais.

Requisição de grãos, 1920-1924.

Um decreto sobre a nacionalização total da indústria também foi cancelado. Assim, comerciantes privados podiam adquirir pequenas empresas, atrair capital estrangeiro e alugar grandes empresas estatais.

Cada empresário podia contratar até 100 pessoas. Todos os trabalhadores tinham o direito de receber seus salários em dinheiro e, para isso, os bolcheviques foram obrigados a restaurar o sistema bancário do país.

Vendedores de salsichas no mercado de Sukharev, 1922.

A prática de trocas sem dinheiro entre cidades também deu lugar às relações de mercado. Os novos empresários, chamados de “NEPman” criaram uma nova rede de revenda de produtos rurais nas cidades e produtos industriais nas aldeias.

Os artesãos começaram a se unir em "artels", associações voluntárias de pessoas para o trabalho conjunto ou outra atividade coletiva. Esses "artels" foram o motor da economia por muitos anos.

O que eram os "artels"?

Um "artel" era uma associação de artesãos que buscavam obter uma maior parte do mercado por meio de esforços conjuntos. “Os 'artels´ da época eram criados por entusiastas atraídos pelo cheiro do dinheiro. O novo governo incentivava esses empreendimentos porque eles aumentavam a produção de bens e serviços e criavam empregos para aquelas pessoas que não conseguiam emprego nas empresas estatais”, escreve o pesquisador da indústria soviética Aleksandr Khrisanov.

1934, trabalho de costura em artel.

A propriedade dos "artels" era compartilhada, como uma cooperativa. “Se um ´artel´ fosse criado por carpinteiros, todos levavam suas próprios serras e martelos. Se fosse necessário equipamento mais caro, ele era adquirido com empréstimos bancários. O dinheiro ganho era distribuído na assembleia geral, e não havia teto para os ganhos”, explica Khrisanov.

A “era de ouro” dos comerciantes privados na URSS terminou em 11 de outubro de 1931, quando o governo de Stálin emitiu um decreto que proibia esse tipo de atividade. No entanto, os "artels" não foram afetados pelo decreto.

Quem dirigia os negócios na URSS?

Escultor de madeira ensina ofício a crianças na região hoje conhecida como Níjni Nôvgorod, em 1937.

No final da década de 1920, o país começou o processo de industrialização, ou seja, o desenvolvimento de empresas industriais. O crescimento do capital dos comerciantes privados se tornou prejudicial para o sistema soviético. Os "artels", porém, se encaixavam na política socialista, e o Estado assumiu total controle sobre eles.

“Todos os ´artels´ foram obrigados a aderir aos sindicatos da indústria, a apresentar relatórios financeiros e a calcular os salários de acordo com uma tabela tarifária única. Grandes coletivos receberam ordens de organizar departamentos do Komsomol (a organização juvenil do Partido Comunista da União Soviética) e uma organização partidária”, escreve Khrisanov.

Esses "artels" eram administrados por pessoas de fora — funcionários do partido e da “nomenklatura” econômica (a classe dirigente da União Soviética).

A fábrica de automóveis V.M. Molotov, em Níjni Nôvgorod, 1932.

No início da década de 1950, havia 12.660 "artels" na URSS. No entanto, seria incorreto chamá-los de empresas ou de associações de empresários privados. O Estado estabelecia preços para todos os produtos e serviços dos "artels", fornecia planos sobre quais produtos deviam ser produzidos e em que quantidade.

Por exemplo, em 1941, o Partido decidiu que os preços dos produtos dos "artels" não devia ultrapassar em mais de 10% os dos produzidos pelas fábricas estatais. Em tempos de guerra, foram emitidos seis decretos para estabelecer o preço das colheres de madeira, por exemplo, que os trabalhadores de "artels" produziam para o exército.

O que aconteceu com os ‘artels’ mais bem-sucedidos?

Após o começo da industrialização, a maioria dos "artels" foram fechados. Os "artels" mais bem-sucedidos foram convertidos em empresas estatais.

Trabalhadores montam armas antiaéreas em fábrica nos Urais, 1942.

 “Nas décadas de 1930 e 1940, os ‘artels’ permaneceram apenas nos setores da economia aprovados pelo partido e pelo governo. No entanto, havia áreas onde não era lucrativo criar organizações estatais. Por exemplo, nos teatros funcionavam ‘artels’ de atendentes de chapelarias", escreve Khrisanov.

Os "artels" produziam muitos produtos tecnologicamente sofisticados. Por exemplo, um "artel" foi transformado na fábrica Radist, a maior fabricante de televisores soviéticos. O "artel" que produzia fuzis para o exército, chamado "Primus", foi transformado em uma fábrica em 1944.

Durante a guerra, eram os trabalhadores dos "artels" que forneciam os produtos mais importantes para a frente de batalha: roupas, capas para aviões, munições e bens de consumo para a retaguarda.

Os "artels" pagavam 60% de seus lucros ao governo na forma de impostos, e costumavam reinvestir os 40% restantes na expansão da produção, salários para os trabalhadores ou melhoria das condições de trabalho.

Quando passou a ser proibido todo e qualquer negócio na URSS?

Até os "artels" mais bem-sucedidos vivam condições extremamente difíceis, já que eram os primeiros culpados no caso de qualquer ruína econômica do país. Os "artels" eram constantemente criticados, seja pelo fracasso na execução do plano estatal, seja pela má qualidade dos produtos ou pela falta de vontade de pensar nos interesses do Estado.

Tecelã do artel

"O Estado fornecia matérias-primas escassas para os ‘artels’, que ficavam em último lugar na lista de prioridades. Assim, os ‘artels’ eram levados a roubar certas matérias-primas, ou comprá-las no mercado negro. Os ‘artels’ ganhavam dinheiro vendendo produtos não registrados. Às vezes, os diretores de ‘artels’ eram presos por essas negociatas", escreve Khrisanov.

Como resultado, o governo chegou à conclusão de que os "artels" tinham fundos monetários demasiado grandes. Em 1960, todas as cooperativas de artesãos remanescentes que não tinham sido nacionalizadas foram fechadas, o que levou à estagnação e à escassez da economia, porque muitas cadeias produtivas foram destruídas. A partir desse momento, só havia um empresário no país: o Estado.

Quando as empresas privadas voltaram a ser legais?

Durante o período de Perestroika — uma série de reformas econômicas realizadas no governo de Mikhail Gorbatchov — surgiram nas ruas soviéticas os “fartsovschiki”. Eram pessoas jovens que compravam de estrangeiros mercadorias indisponíveis na União Soviética e as revendiam a seus compatriotas por um preço maior.

Cidade de Togliatti. Produtos confiscados de especuladores em 1989.

Eles compravam cigarros, canetas, isqueiros e discos fonográficos pagando com vodca soviética, caviar e outros produtos abundantes na URSS. Esse negócio clandestino se tornou possível após a abertura parcial da Cortina de Ferro — embora ainda fosse considerado ilegal.

Em 1986, foi aprovada uma lei que permitia obter ganhos complementares no tempo livre de um trabalho principal. Mas esses ganhos podiam se basear "exclusivamente no trabalho pessoal dos cidadãos e suas famílias". Assim, surgiram nas ruas soviéticas, por exemplo, os taxistas privados.

Apenas em 26 de maio de 1988 o governo de Gorbatchov aprovou uma lei que permitia às cooperativas exercer atividades (que não fossem proibidas por lei), entre elas, o comércio.

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