A União Soviética contra os xamãs

"Dança do xamã", 1971.

"Dança do xamã", 1971.

Iúri Murávin/TASS
O xamanismo, nativo de tantos povos da Sibéria e do Extremo Oriente, foi proibido após o início da URSS. Pessoas ligadas a essa prática perdiam os empregos, moradias, eram expulsas das comunidades... E essas foram apenas algumas das tragédias que se abateram sobre os praticantes do xamanismo.

Bogdan Onenko, de 65 anos, natural da aldeia de Nai Khin, a 8.500 quilômetros de Moscou, foi preso em 12 de setembro de 1937 e executado, por fuzilamento, 40 dias depois. Naquele mesmo ano, o primeiro representante do comitê executivo do distrito de Nanai, B. Hodjer, foi acusado de “ocultar e proteger xamãs e fornecer provas falsas, alegando que havia apenas seis xamãs no distrito, enquanto um censo revelou que havia 130 xamãs”. Todos os xamãs perderam o direito de serem eleitos a cargos.

Esses fatos históricos reais são provenientes de documentos de arquivos que detalham a perseguição sofrida por xamãs durante a época soviética. O governo da URSS tinha como alvo todos que tivessem ideologia diferente da do Estado, e essa batalha se estendeu para além de partidos políticos.

O Estado ateu da URSS liquidou todas as fés religiosas e seus adeptos, do cristianismo ortodoxo ao islamismo e budismo. O xamanismo, uma visão de mundo tradicional dos povos da Sibéria e do Extremo Oriente, também entrou na lista.

‘Os xamãs corromperam o kolkhóz’

“Quando eu era pequena, vivíamos na aldeia de Rezemovo. Nós, crianças, fomos avisados ​​com antecedência de que aconteceria a ‘casa escura’, ou seja, tudo ficaria escuro. Isso foi feito para evitar que nos assustássemos se ouvíssemos algo fora do comum ou assustador”, conta Elizaveta Kopotilova, hoje aos 63 anos, relembrando seu encontro de infância com um xamã da aldeia.

E assim foi: na escuridão, um som estranho começou a se espalhar, como se alguém estivesse correndo. “Não era alto, mas sim suave... E então, cessou, como se alguém tivesse parado. E então, pelo contrário, o som começou a ressoar, até finalmente desaparecer completamente, como se alguém estivesse em processo de partida. Acenderam as luzes novamente e os adultos voltaram a conversar, discutir alguma coisa”, lembra.

 Xamã da etnia chor, 1930–1940.

Isso ocorreu em Iugri, território da atual Região Autônoma de Khanti-Mansisk. Iugri, desde tempos imemoriais, era considerado o berço do xamanismo siberiano. A história acima ocorreu durante o expurgo dessa cultura xamânica, como podemos perceber pelo uso da frase “casa escura”: era preciso cobrir as janelas para realizar rituais em completa escuridão, para não atrair a atenção do lado de fora.

Os “kamlania” (“ritos”) xamânicos eram visitados por toda a aldeia. As pessoas iam para curar doenças, orar por parentes mortos, pedir aos espíritos saúde para o gado, pedir um clima bom e o fim da mortalidade do gado. Os xamãs sempre foram respeitados e ouvidos. Mas o governo soviético não queria compartilhar poder e autoridade e via o xamanismo como o “ópio do povo”, referindo-se a eles como elementos “hostis” e inimigos do Estado.

Tudo começou na década de 1920, quase após a formação do novo Estado soviético. Os xamãs foram prontamente destituídos de direitos eleitorais em todas as eleições, inclusive nas aldeias e distritos. Na prática, isso significava que essas pessoas eram excluídas do sistema de agricultura coletiva (kolkhóz) e, como resultado, privadas de todos os meios de subsistência. Alguns comitês de aldeias votaram ainda pela expulsão dos xamãs das aldeias — o que significava que eles perdiam suas casas, além de tudo.

A primeira onda antixamânica - mascarada como parte da luta contra os “kulaks” (camponeses ricos). Juntamente com os xamãs, todos os outros grupos sociais desfavoráveis ​​foram eliminados: padres, mercadores, cossacos, comerciantes. Todas suas propriedades foram confiscadas.

“O xamã ‘Beldi Pelkha’ usa sua influência para corromper o kolkhóz”, lia-se em um relatório. Os membros do “kolkhóz”, que tinham laços estreitos com ele, teriam deixado “a brigada de pesca do kolkhóz para outro aquífero, sem cumprir com suas cotas (em vez de 35 tsentner [uma unidade de peso em partes da antiga União Soviética igual a 100 kg], entregaram cinco. E vendem o resto.)”

Xamã, 1916.

Para organizar uma perseguição sistemática em grande escala, em vez dos ataques locais e desorganizados à religião e práticas espirituais alternativas que se davam até então, as autoridades criaram, em 1925, a União dos Ateus Combatentes.

Essa organização civil iniciou uma enorme campanha contra a religião. Os “bezbójniki” (“ateus”) passaram a realizar reuniões, exposições, publicar livros, criar grupos nas fábricas, nos “kolkhózes” e nas universidades etc.

Eles se referiam ao xamanismo como uma “religião vingativa e feroz”, da qual a população estava “cansada”. No entanto, essas medidas não surtiram o efeito desejado. O xamanismo entrou para a clandestinidade.

Anos sombrios

A década de 1930, quando ficou claro que o programa para afastar completamente a população de práticas religiosas alternativas não tinha dado certo, mostrou-se o período mais repressor nessa esfera.

Apenas a forma dos ritos mudou: em vez do tradicional tambor siberiano (que era muito barulhento), os xamãs usavam um machado, que penduravam no pescoço, com a lâmina apontada para o rosto. Os rituais tornavam-se cada vez mais silenciosos e as reuniões eram feitas com muito mais cuidado.

Invasões começaram a ser comuns. Qualquer objeto de culto era confiscado e queimado. Houve casos em que filhos de xamãs entraram em organizações comunistas e confiscaram os itens de seus próprios pais. Em documentos de arquivos, podemos ler, por exemplo, sobre Pável Tumali, que pegou o tambor e o cinto de seu pai, Podia Tumali, e os jogou no rio Amur, dizendo: “Não nos envergonhe!”

Por causa disso, os xamãs tinham que ir cada vez mais para os rincões e se esconder nas matas para realizar seus ritos. Muitos preferiram deixar a prática por completo, temendo a prisão e possível execução. Mas alguns pesquisadores notam que repressões em massa e fuzilamentos nunca ocorreram: isso teria ocorrido apenas em casos pontuais, segundo eles.

Xamã, 1970.

Punições mais simples, como multas ou demissões, eram comuns. Isso incluía não apenas os xamãs, mas todos que pareciam não estar lutando o suficiente contra o xamanismo.

Em um relatório de 1937, podemos ler: “Os xamãs se aproveitaram do trabalho negligente do conselho e da administração da aldeia. Com a nova Constituição em vigor, eles só fizeram ampliar suas atividades. Se, em 1935, apenas um xamã estava ativo - Beldi Pelkha -, existem nove ativos no momento.”

Quando o fim não é verdadeiro

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a proibição das atividades xamânicas não desapareceu. O xamanismo seria proibido ainda até a década de 1980 — mas apenas simbolicamente.

Na década de 1960, os xamãs ainda eram multados por realizar ritos, mas isso não os impedia: eles eram discretos, reunindo-se em casas com as luzes apagadas ou depois da meia-noite, com as janelas fechadas etc.

Na primeira metade da década de 1980, nenhum relatório oficial continha nenhum detalhe sequer sobre a luta contra práticas espirituais alternativas. Os xamãs, segundo dados oficiais, tinham desaparecido por completo em algumas regiões. Uma editora de Khabarovsk (região do Extremo Oriente), por exemplo, lançou, em 1982, o livro “O Conto do Último Xamã” de A.A. Passar.

Xamã, 2011.

Claro, isso não significava o fim do xamanismo na prática. Depois de muitos anos de perseguição, ele tinha apenas mudado de visual. Se, nas aldeias da Iakútia e da Buriátia, sua imagem tinha permanecido inalterada, sobrevivendo a anos de privação, a situação foi diferente em relação ao xamanismo do Quirguistão, muito menos popular, que se transformou em outra coisa: os xamãs quirguizes não tocam tambores, nem usam vestimentas especiais, mas mantêm apenas certos atributos de sua religião, como o cetro e o chicote.

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