Por que a antiga Rus escolheu o cristianismo oriental como religião?

História
ALEKSANDRA GÚZEVA
Reza a lenda que, depois de renunciar ao paganismo, os russos decidiram escolher uma religião dentre quatro opções...

No manuscrito “Crônica dos Anos Passados", há um episódio em que o príncipe Vladímir escolhe uma nova fé para seu país. Representantes de diferentes religiões vão até ele, descrevem eloquentemente os méritos de sua fé e tentam convencê-lo a segui-la.

O que foi que não agradou nas outras religiões e o que o príncipe viu no cristianismo oriental – depois chamado de Ortodoxo - que o atraiu?

De como Vladímir escolheu sua fé

Era o final do século 10 e o príncipe Vladímir governava a Rus de Kiev. Segundo a crônica, o príncipe era um pagão convicto, tinha inúmeras esposas e concubinas e era conhecido por seu temperamento áspero e violento.

Mas ele tinha uma preocupação. Ele viu que estava sendo cercado por todos os lados por novas potências monoteístas. A avó dele, a princesa Olga, que teria tido influência sobre ele, tinha se convertido ao cristianismo oriental grego — ela é reverenciada na Rússia como a primeira cristã do país, a Santa Princesa Olga.

A “Crônica dos Tempos Passados”, a primeira russa, contém uma descrição detalhada de como Vladímir escolheu sua fé. Certa vez, no ano de 986, depois de mais uma campanha militar bem-sucedida contra os búlgaros do Volga, que professavam o islamismo, Vladímir foi visitado por representantes da fé muçulmana, que lhe disseram que, apesar de toda a sua sabedoria e força, ele não conhecia a "lei".

O que eles queriam dizer era que, no paganismo russo, não havia um conjunto de regras sobre como viver a vida. Os búlgaros convidaram o príncipe a aceitar sua lei e seguir Maomé. Vladímir pediu-lhes então que lhe explicassem em que consistia a sua fé.

Como as principais teses monoteístas eram bastante semelhantes em todas as quatro religiões, o príncipe – assim como o autor da crônica – concentrou-se mais em uma definição concisa e exaustiva das diferenças entre as crenças.

Os búlgaros responderam a ele que as principais características que distinguiam o Islã eram que se devia “realizar a circuncisão, não comer carne de porco, não ingerir bebidas alcoólicas, mas após a morte, podia-se cometer fornicação com as esposas”.

Isso não era algo novo para Vladímir: ele tinha cerca de cinco esposas e várias concubinas. No entanto, ele não gostou da ideia da circuncisão ou da proibição de carne de porco e da bebida alcoólica. Segundo a crônica, Vladímir teria dito uma frase lendária em resposta: “Beber é a alegria de todos os russos. Não podemos existir sem esse prazer.”

Os muçulmanos saíram sem nada. Logo eles foram seguidos pelos “alemães” (como todos os europeus ocidentais ficaram conhecidos na Rússia por um longo tempo), enviados pelo Papa, que disseram: “Nossa fé é leve; nós nos curvamos a Deus, que criou o céu e a terra, as estrelas e a lua e tudo o que respira, enquanto seus deuses são apenas madeira”.

Eles também falaram a Vladímir sobre a exigência de observar um “jejum não rigoroso de acordo com a força de cada um”. Depois de ouvir os emissários do Papa, Vladímir, no entanto, os deixou ir sem resposta: “Voltem para o lugar de vieram, pois nossos pais não aceitaram isso.”

Realmente, de acordo com as crônicas ocidentais, os “alemães” haviam ido à Rus anteriormente, mas os príncipes russos se opuseram à ideia de uma aliança com eles e também a aceitar sua fé. Os príncipes escolheram Bizâncio em seu lugar.

Como se revelou, aquela primeira visita dos “alemães” a Kiev foi organizada pela princesa Olga. Ela esperava que o imperador bizantino tivesse medo de uma possível reaproximação entre a Rússia e a Alemanha e a perda da paz com Kiev, e que fizesse concessões aos príncipes de Kiev, fechando um acordo mutuamente benéfico com eles. O imperador precisava do exército russo na luta contra os árabes por Creta. E seu cálculo revelou-se correto.

Depois dos enviados do Papa, foram os cazares judeus que visitaram Vladímir — o príncipe já havia estado em campanhas militares contra a Cazária e colocado impostos a ela.

Mas Vladímir não se impressionou com a relação entre Deus e um povo que foi expulso de sua terra e se tornou um povo errante, pois os rejeitou: “Como vocês podem ensinar os outros quando vocês mesmos foram rejeitado por Deus e dispersos? Se Deus amasse vocês e sua lei, então vocês não teriam sido dispersos por terras estrangeiras. Ou vocês desejam o mesmo para nós?”

Segundo a crônica, depois dos outros emissários, Vladímir foi visitado por um “filósofo” grego. Ele criticou as outras religiões e explicou ao príncipe em detalhes a essência do cristianismo grego e sua fé em um homem crucificado.

Vladímir ficou impressionado, mas decidiu pensar um pouco – e escolher entre o islamismo e o cristianismo. Ele enviou seus emissários de confiança para observar como eram os ritos e cerimônias religiosas nessas duas fés.

Seus enviados não gostaram do que viram em uma mesquita, mas ficaram profundamente comovidos com o culto em uma igreja grega. Quando voltaram, disseram a Vladímir: “Não há outro espetáculo e beleza semelhante na terra, e não sabemos como descrevê-lo. Sabemos apenas que Deus está com as pessoas, e sua missa é melhor do que em todos os outros países”.

Por que adotar o cristianismo foi uma vantagem para a Rússia

É desnecessário dizer que os historiadores russos e ocidentais apresentaram inúmeras explicações pragmáticas para a escolha que a antiga Rus fez em favor do cristianismo grego. Segundo o historiador Vassíli Kliutchêvski, o principal objetivo dos primeiros príncipes de Kiev era proteger suas fronteiras de um ataque de um inimigo externo e garantir o comércio exterior.

Vladímir tinha que se certificar de que as terras e tribos que viviam nas terras ocupadas, que haviam sido recentemente reunidas sob seu governo, mas ainda estavam fragmentadas, pagavam os impostos em dia, eram leais ao governo e serviriam a ele no caso de um ataque externo.

De acordo com Kliutchêvski, a conversão da Rússia ao cristianismo – e a forma de cristianismo proveniente de Bizâncio – foi facilitada pela multiplicidade de laços culturais, comerciais e políticos que existiam entre a Rússia e Bizâncio. Em parte, isso também foi impulsionado pelo desejo de Bizâncio de “domar” um vizinho cheio de energia para se expandir.

Os príncipes varegues que governavam a Rus atacaram Bizâncio mais de uma vez. Para evitar ataques dos pagãos beligerantes, o imperador bizantino, muito antes do reinado de Vladímir, despachou missionários para a Rus.

Além disso, Vladímir, sem dúvida, queria se beneficiar de sua conversão ao cristianismo grego. Em 988, ele capturou a cidade bizantina de Korsun (atual Querson, na Crimeia) e exigiu - em troca de paz - se casar com a irmã do imperador, a princesa Anna.

Sob a ameaça da invasão de Constantinopla por Vladímir, o imperador concordou, mas exigiu que Vladímir se tornasse cristão primeiro. Reza a lenda que Vladímir foi batizado em Korsun (no século 19, a Catedral de Vladímir foi construída no local).

Casar-se com Anna era, antes de tudo, um sinal de prestígio para Vladímir. Ele não era mais considerado um príncipe pagão bárbaro, mas um parente do próprio imperador.

A crônica registra uma mudança milagrosa que ocorreu no caráter do príncipe após seu batismo: ele teria renunciado à fornicação e se tornado virtuoso e misericordioso. Quando chegou a Kiev, a princesa Anna foi acompanhada por clérigos bizantinos e ministros da Igreja, que começaram a converter os russos ao cristianismo, difundir a alfabetização e ensinar a Lei de Deus.

Não importa, porém, por quais razões e em que circunstâncias o príncipe Vladímir se converteu ao cristianismo oriental: esse evento ocorreu aproximadamente no período indicado e teve consequências enormes e de longo alcance para a história e o futuro da Rússia.

O príncipe Vladímir foi canonizado como “equiparável aos Apóstolos” e tornou-se popularmente conhecido como Vladímir, o Belo Sol.

 

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