Como os russos inventaram os memes no século 17: a história do ‘lubok’

Domínio público
Imagens cheias de cor com legendas explicativas adiantaram em séculos as HQs e os memes e eram penduradas em quadrinhos em todas as casas russas.

Dois amigos, Savoska e Paramochka, jogam cartas, enquanto seus subordinados os observam. Savoska perde e começa a arrancar os cabelos em desespero. O vencedor, Paramochka, está zombando dele, enquanto seu lacaio diz, fazendo uma figa ao perdedor: “Então, Savoska não ganhou uma moeda de cobre de Paramochka”. Já o outro subalterno tenta animar Savoska: "Não chore, idiota, filho da p%¨#& Savoska, Paramochka também vai apanhar."

Esta tirinha humorística é típica de um lubok russo, uma “história em quadrinhos” medieval. Cores vivas, desenhos primitivos, legendas que explicam o enredo... Isso é um lubok.

Lubok “Savoska e Paramochka”, século 18. A legenda diz: “Paramochka jogava cartas com Savoska. Paramochka venceu e Savoska olhou em sua bolsa e encontrou um único copeque lá. [Paramochka] começou a rir dele e ele começou a arrancar os cabelos.”

O lubok é uma forma de arte gráfica em que o artista cria uma xilogravura, a imprime e depois pinta à mão. O nome vem da palavra “luba”, que significa a parte interna da casca da tília, que era usada para criar a xilogravura.

Origens

A produção em larga escala de gravuras populares foi inventada no século 8, na China e, sete séculos depois, as gravuras começaram a aparecer na Europa. Ironicamente, a técnica chegou à Rússia pelo oeste, através de Ucrânia, Bielorrússia e países dos Balcãs. Os luboks de xilografia (xilogravura) foram criados na gráfica de Kiev-Pechersk Lavra, um dos primeiros mosteiros na Rússia de Kiev. Naturalmente, na época, os enredos para as imagens vinham principalmente da Bíblia: ninguém tinha pensado ainda nos engraçados luboks sobre Savoska e Paramochka. A primeira dessas gravura é considerada o ícone da Dormição de Theotokos (1614-1624).

Em Moscou, as gravuras lubok começaram a se espalhar na corte do tsar em 1635, quando o tsarevich Aleixo da Rússia, aos 7 anos de idade, comprou as folhas impressas na Praça Vermelha. Mais tarde, as gravuras lubok surgiram entre os boiardos e logo se espalharam entre os camponeses.

“Praça Vermelha na segunda metade do século 17”, A. Vasnetsov, 1925.

No século 17, a maioria das gravuras do tipo lubok ainda pertencia ao gênero religioso. No entanto, além de criar imagens de santos realistas, os artistas urbanos começaram a produzir folhas impressas para diversão, que eram vendidas aos camponeses. Em 1653, após a reforma da igreja de Nikon, os velhos crentes e seguidores de Nikon começaram a criar suas próprias impressões lubok. Como resultado, em 1674, o Patriarca Ioakim proibiu a representação de santos em gravuras lubok.

Lubok “Arcanjo Mikhail”, autor desconhecido, 1668.

Naquela época, Moscou já tinha suas próprias oficinas para a produção de luboks, incluindo a “Sloboda” na esquina das avenidas Sretenski e Rojdestvenski. Ela empregava cortadores de madeira e impressores, bem como artesãos da escola de impressão de Kiev-Lviv. Entre eles, estava Vassíli Koren, conhecido por criar a primeira Bíblia esculpida da Rússia.

Lubok “Expulsão do Eden”, de Vassíli Koren, século 17.

No final do século 17 e no início do século 18, as impressões de lubok retratando contos folclóricos, épicos e lendas começaram a ser vendidas nos mercados. Os personagens folclóricos mais famosos eram Bova Korolevitch e Eruslan Lazarevitch. Eles eram conhecidos por sua notável força e coragem diante de hordas de inimigos. No entanto, suas aventuras eram diferentes.

Nas histórias, o herói Eruslan Lazarevitch viaja muito e visita o Reino Distante e Vakhrameievo, onde se casa com Marfa Vakhrameieva. Durante suas viagens, ele conhece o bravo herói Ivan e se torna seu amigo, e também luta contra uma serpente de três cabeças.

Lubok “Eruslan Lazarevitch”, século 18.

Ao contrário de Eruslan, que viaja por conta própria, Bova Korolevitch foge do palácio por causa de sua mãe má, Miritritsa, e acaba no reino de Zenzivi Andronovitch. Ele se apaixona por sua filha Drujevna. Ela tem muitos pretendentes, mas Bova Korolevitch entra em inúmeras batalhas e salva Drujevna das mãos do Rei Markobrun. Os luboks frequentemente retratava a batalha entre Bova Korolevitch e Polkan, uma criatura com a parte superior de um homem e a parte inferior de um cão.

Lubok “Bova Korolevitch e Polkan”, século 19.

No século 18, Pedro, o Grande, percebeu que as impressões em lubok poderiam funcionar bem para fins de propaganda doméstica. É por isso que, em 1711, ele montou uma oficina de gravura que empregava os melhores artistas lubok da época. Já em 1724, o imperador emitiu um decreto sobre a impressão de luboks em placas de cobre.

Isso facilitou o trabalho dos artistas, já que as gravuras em cobre eram mais expressivas e precisas do que as xilogravuras. Com as placas de cobre, a criação das ilustrações não exigia tanto esforço: em vez dos cupins para entalhar a madeira, eram usados ​​ácidos e agulhas, e os defeitos podiam ser corrigidos com a ajuda de um verniz especial.

Lubok “Festa dos piedosos e ímpios”, século 18.

Apesar dos esforços do Estado para controlar a produção de luboks, as xilogravuras continuaram a ser vendidas nas bancas do mercado. Além disso, o país tinha uma enorme quantidade de gravuras lubok zombando do imperador e de suas reformas.

Lubok “Como os ratos enterraram o gato”, século 18. Pedro, o Grande, costumava ser descrito como um gato feroz. Esta gravura é uma sátira ao funeral do imperador.

No século 19, as gravuras lubok mostraram sua eficácia como uma espécie de “mass media”. Durante a Guerra Patriótica de 1812, luboks de guerra estavam em demanda. Datas exatas, nomes reais e detalhes transformaram as impressões lubok em uma fonte importante de informações. Alguns dos eventos eram descritos nas fotos, outros, em legendas. Além de cobrir os fatos, a representação artística de um determinado episódio histórico acrescentava um colorido emocional à seção verbal do lubok, despertando a imaginação do leitor.

Lubok “A Batalha de Kulikovo”. I.G. Blinov, segunda metade do século 19.

Além de contos de glória militar, histórias bíblicas e folclore, as gravuras lubok retratavam momentos da vida cotidiana dos camponeses — por exemplo, o processo de tecer sapatos de palha.

Lubok “Homem tecendo sapatos de palha”, século 18.

Em muitos aspectos, as gravuras lubok serviam como obras de ficção para os camponeses.

Lubok “O Pequeno Cavalo Corcunda”, século 19.

Além disso, as gravuras em lubok retratavam várias histórias absurdas e implausíveis. Na verdade, eles eram os “memes da Rússia pré-revolucionária”.

Lubok do século 18. Na legenda se lê: “Um urso e uma cabra estão passando o tempo, se divertindo tocando sua música. O urso colocou o chapéu e está soprando o cachimbo, enquanto a cabra cinza colocou um sarafan azul e com suas trombetas, sinos e colheres está pulando e dançando”.

Os luboks também eram usados ​​para ridicularizar a vaidade e a ganância das classes mais altas.

Lubok “Um dândi e uma mulher vendida”, século 18. Legenda: “Tenho este hábito desde muito jovem: sem dinheiro, não faço amor com homem algum, por mais bonito que seja. Não tenho nenhuma aversão a ter lucro e estaria pronta a fazer amor com um touro por dinheiro.”

A introdução da litografia no século 19 barateou a produção de gravuras lubok e tornou-a mais rápida. No entanto, isso teve um efeito negativo na qualidade e a maioria dos luboks e contos de fadas tinham que ser reimpressos.

Lubok “O conto do pescador e do peixe”, baseado em conto de fadas de Púchkin, 1878.

O ano de 1918 foi um marco na história do lubok. A impressão passou a estar sob controle do Estado e era sujeita a censura ideológica. No entanto, a tradição do lubok ainda pode percebida em obras de artistas do século 20, por exemplo, Wassily Kandinsky.

Afresco “Amazona nas montanhas”, W. Kandinsky, 1918.

Lubok nos dias atuais

Com o tempo, o lubok deixou de ser uma arte de massa e hoje só pode ser encontrado em museus.

Mas os artistas russos estão tentando dar um novo fôlego à tradição do lubok. Um famoso autor de gravuras lubok do século 21 é Viktor Penzin. Ele cria estampas lubok modernas usando métodos tradicionais, como a gravura e a pintura em aquarela. Suas obras podem ser encontradas na Galeria Tretiakov e no Museu de Belas Artes Púchkin.

Lubok “São Jorge, o Vitorioso”, 1967-1980.

Outro artista contemporâneo, Andrêi Kuznetsov, cria estampas lubok on-line sobre temas da atualidade, com teor grotesco e alegorias. Suas obras costumam apresentar personagens de filmes estrangeiros e desenhos animados soviéticos.

Lubok “Espancar é sinal de amor”, 2003. Legenda: “Aqui está um Van Damme duplo: amou-se tanto a si mesmo que se dividiu em dois. Sempre que ele toma vodca, começa a lutar contra si mesmo.”
Lubok “Anikeika”, 2003. Legenda: “Lamer Anikeika está pressionando as teclas, mas ele não tem a menor ideia do que faz; ele comprou um dispositivo USB, mas não tem ideia de onde inseri-lo.”

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