“Fui o espaço, mas não encontrei Deus.” Essa frase foi atribuída a Iúri Gagárin (1934-1968), o primeiro homem a ir ao espaço, depois que ele voltou de pioneira missão. A máquina de propaganda soviética usou a declaração para, mais uma vez, acertar os ponteiros em casa: a ciência é superior à religião e, portanto, a sociedade soviética secular está fadada ao sucesso na guerra ideológica.
Na realidade, porém, era muito mais difícil erradicar a fé até dos cosmonautas soviéticos.
“Eu o vi”
Depois que Gagárin voltou do espaço, ele compareceu a uma recepção no Kremlin. Reza a lenda que ali teria havido uma interação engraçada entre a recém-criada super estrela Gagárin e o líder soviético Nikita Khruschóv.
Khruschóv teria perguntado a Gagárin se ele viu Deus no espaço. “Claro que eu o vi”, teria, então, respondido zombeteiramente o cosmonauta. A resposta de Khruschóv foi tão espirituosa quanto a de Gagárin: “Eu sabia! Mas não conte a mais ninguém!”
Na realidade, existem relatos conflitantes sobre as ideias de Gagárin quanto à religião. Por um lado, uma autobiografia de Gagárin escrita por ghostwriters intitulada “Caminho para o espaço” mostrava um Gagárin contra crenças religiosas:
“O voo espacial tripulado foi um golpe esmagador para os clérigos. Nas torrentes de cartas que me dirigiram, tive o prazer de ler confissões em que os fieis, impressionados com as realizações da ciência, renunciaram a Deus, concordaram que Deus não existe e tudo relacionado ao nome dele é ficção e absurdo.”
Quando Gagárin visitou a capital Islândia, Reykjavik, em turnê internacional, um jornalista lhe perguntou se ele tinha rezado antes do histórico voo, e o cosmonauta respondeu energicamente: “Os comunistas nunca rezam a Deus”.
No entanto, algumas fontes afirmam que pioneiro do espaço era um religioso discreto, que não queria comprometer sua posição com as autoridades soviéticas dizendo o que realmente pensava.
Outros cosmonautas soviéticos, no entanto, eram bastante claros quanto a isso.
“Por que eu acredito?”
O cosmonauta soviético Gueórgui Grétchko (1931-2017) tornou-se um religioso fervoroso durante a Segunda Guerra Mundial. Ele tinha apenas dez anos quando a Alemanha nazista invadiu a União Soviética, mas as memórias dos horrores da guerra desencadearam nele uma profunda crença.
“Por que eu acredito? Porque durante a guerra, não foi sequer na frente de batalha, mas na retaguarda ou na ocupação, como aconteceu comigo, uma pessoa não espera por nada, senão Deus. E posso lhe dizer que quase todo mundo tinha fé religiosa naquela época. Porque as pessoas querem viver! E eu, ainda menino, acreditava. Acredito que nasci para ser cosmonauta. E quando, por ingenuidade, paixão ou estupidez, fiz algo para me afastar desse caminho, acho que meu anjo da guarda me castigou severamente. Ele me levou ao desespero. E então, da maneira mais incrível possível, ele colocou de volta no meu caminho”, disse, mais tarde Grétchko.
Durante os tempos soviéticos, a fé não era algo que o Estado aprovasse. Os cosmonautas eram pessoas que estavam na vanguarda da corrida tecnológica soviética contra o bloco ocidental e, portanto, simbolizavam o sistema soviético e, assim, passavam por uma seleção estrita. Na época, era impensável que uma pessoa de fé declarada pudesse ser considerada adequada para a nobre profissão de cosmonauta.
Mas, uma vez que os sentimentos religiosos se provaram difíceis de erradicar, o governo às vezes fechava os olhos às crenças pessoais dos cosmonautas, se eles pudessem mantê-las para si.
Depois da queda da União Soviética, alguns oficiais ateus puderam “sair do armário”, sem temer a repercussão. Aleksêi Leonov (1934-2019), o primeiro homem a realizar uma caminhada no espaço e, portanto, um dos pioneiros do programa espacial soviético, certa vez expressou sua posição sobre a religião:
“É difícil em nossa profissão não ter fé. Um cosmonauta entrando em órbita tem que saber que tudo ficará bem. Hoje, é possível receber a bênção de um padre, visitar uma igreja, e muitos o fazem”, disse Leônov.
Hoje, uma prática aceita entre os cosmonautas é levar ícones ao espaço ou benzer a nave espacial antes de um voo, atos que seriam um provocação inimaginável à ideologia soviética.
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