O cômodo mais importante de um apartamento russo

Anatóli Sergueev-Vassíliev/Sputnik
Todo russo sabe o que significa uma “conversa de cozinha”. E você, sabe?

Veja a planta de um apartamento soviético padrão em uma “khruschovka”, os prédios baixos de blocos de concreto pré-prontos e fáceis de construir onde vivia a maioria do povo soviético.

Planta de três apartamentos em prédio residencial; as cozinhas estão marcadas com um círculo vermelho.

Nesta planta, é possível distinguir claramente que as salas de estar são muito pequenas. Se uma família de quatro pessoas morasse nesse apartamento, os dois cômodos serviriam como dormitórios e salas de estar ao mesmo tempo, e haveria apenas um cômodo onde ninguém dormiria à noite: a cozinha. Devido ao planejamento dos apartamentos, as cozinhas soviéticas se tornaram um verdadeiro fenômeno!

Revolução com banheiro compartilhado

Na Rússia tsarista, o “fenômeno” da cozinha não existia. Os camponeses faziam a comida em fogões que ficavam dentro das casas e não existia um cômodo chamado “cozinha”. Já os camponeses ricos, as famílias de mercadores e os nobres que viviam nas cidades tinham cozinhas, que eram frequentadas pelos servos. Mesmo quando surgiram casas na cidade grande com múltiplos apartamentos, cada um deles tinha sua cozinha, mas os proprietários não ficavam ali... até a era soviética!

Os primeiros cidadãos soviéticos descobriram a palavra “uplotnenie”, que significava “condensação” e passou a ser usada para se referir ao processo de divisão da propriedade privada quando de sua nacionalização pelos bolcheviques em 1918.

 Cozinha em apartamento comunal com equipamentos separados.

Isso ocorreu também com os apartamentos residenciais. Muitos proprietários de apartamentos com 5 a 6 cômodos tiveram que acomodar novos inquilinos por ordem do governo, que exigia que apenas um quarto estivesse disponível para cada adulto.

O processo significou na prática, porém, que famílias inteiras passaram a morar em cômodos de 10 a 12 metros quadrados, porque havia muito mais inquilinos nas cidades do que residências. Surgiram assim as “kommunalkas”, apartamentos comunitários onde pessoas que não tinham relações de parentesco viviam juntas e compartilhavam quartos de banho, toaletes (na Rússia, em geral, a privada fica em um cômodo muito pequeno separado por paredes da banheira) e cozinhas.

O centro da vida social

Família Trofímov, da cidade de Tcherepovets.

“A cozinha era compartilhada. Se os vizinhos se davam bem, os utensílios domésticos ficavam disponíveis nela, mas se eles não se “bicavam”, tudo ia para os quartos, até fósforos e sal”, lembra a pintora Irina Soia-Serko, que viveu em uma “kommunalka”.

A cozinha era um cômodo único em um apartamento comum. Por um lado, era um cômodo funcional, destinado à preparação de alimentos. Por outro, era um espaço social, uma espécie de "fórum" do apartamento.

O antropólogo russo Iliá Utékhin, que estudou o fenômeno da vida comunal, escreveu: “A cozinha é o centro da vida social do apartamento, o lugar principal onde os inquilinos se encontram e interagem, o principal palco dos eventos públicos na vida dos apartamentos. Nenhum outro local público se compara à cozinha em tal multifuncionalidade. A pessoa pode estar na cozinha mesmo quando não está preparando comida ou fazendo outros trabalhos domésticos, mas simplesmente querendo se comunicar.”

Cozinha da família Lavrentiev.

Já a moradora de São Petersburgo Olga relembra: “Seis quartos e uma grande cozinha comunitária onde os vizinhos discutiam e faziam as pazes. Pessoas tão diferentes frequentavam a mesma cozinha e dividiam seus segredos.”

Mas a comunicação poderia ser bem diferente: se os vizinhos estivessem em pé de guerra, tinham que ficar na cozinha durante todo o preparo de sua comida. E não era só para que a comida não “caísse” no fogão: “A cozinha era a linha de frente e a luta ali era séria. Vizinhos raivosos desligavam o gás enquanto a comida dos outros ainda estava crua, sal ia parar no chá e açúcar, na sopa. Mas isso não era o pior: também acontecia de surgir na comida graxa de sapato, sabonete etc. Bastava sair um minuto e pronto, o jantar estava arruinado”, escreveu o historiador Aleksêi Mitrofanov.

O fogão na cozinha comunitária era geralmente dividido entre os inquilinos em “zonas”. Assim, uma parte do fogão poderia estar sempre limpa e a outra, suja - os inquilinos muitas vezes tinham opiniões diferentes sobre higiene e, ao mesmo tempo, ninguém queria limpar a bagunça do outro.

No entanto, quando os inquilinos estavam em tempos de paz, a cozinha era um local de ajuda mútua e alegres celebrações. “Todas as comemorações eram feitas em conjunto por todas as famílias, seus parentes e amigos”, lembra Ekaterina, de São Petersburgo. “E sempre havia alguém que te mimava e alimentava, bastava ir até a cozinha.”

‘Cortina de fumaça’

Assim como uma “cortina de fumaça” é uma expressão idiomática em português para “disfarce”, a expressão "cozinha cheia de fumaça", em russo, significa um lugar para conversas clandestinas — muitas vezes, discussões políticas. Na URSS, não havia liberdade de expressão. Todos eram forçados a seguir ideologicamente o Partido Comunista.

Muitas vezes, o único lugar onde se podia falar o que desse na telha era na cozinha. E era preciso fazê-lo a meia-voz, se você estivesse em um apartamento comunal, porque os vizinhos podiam ouvi-lo xingar o governo soviético e denunciá-lo à KGB.

“Você e eu nos sentamos na cozinha. [...] Amarre a cesta antes do amanhecer, para partir para a estação, onde ninguém nos encontrará”: estes são versos do famoso poema de Óssip Mandelstam sobre si e a mulher, Nadejda, fugindo no início dos anos 1930. A poesia marca a cozinha noturna como cronotopo para tudo o que é antissoviético.

O ator Valéri Zolotúkhin lembra-se de visitar o escritor Boris Mojaev em seu apartamento comunal: o escritor não podia convidar seus hóspedes para ir até seu quarto, porque seus filhos dormiam ali. Assim, a cozinha tornou-se, para Mojaev, também um escritório: “numa das mesas, entre os pratos, havia uma máquina de escrever, um papel limpo e a caneta do escritor. [...] Bebemos e começamos a falar sobre a vida, principalmente sobre a terra russa, o campesinato... Ele falava muito sobre Tolstói. Havia moscas ‘comunais’ gigantes voando ao redor, lançando sombras enormes contra a lâmpada.”

A cultura das “conversas na cozinha” começou a diminuir na década de 1980, quando a maioria dos soviéticos já tinha apartamentos apenas para suas famílias e mais ninguém. Mas a realidade das cozinhas ainda se refletia em muitas letras de músicas de rock russas.

“Algumas palavras para a cozinha, outras para as ruas”, cantava a banda de rock Nautilus Pompilius. Já Viktor Tsoi, o roqueiro do grupo Kino, cantava: “Eu amo cozinhas porque elas guardam segredos”. Mas as cozinhas russas ainda são cômodos "sociais" nos apartamentos russos - em grande medida, porque os apartamentos ainda são, na maioria, pequenos e mal planejados.

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