“Só somos livres em nossos sonhos. O resto do tempo precisamos de salários”, disse certa vez o escritor inglês de Terry Pratchett, sem nenhum indício de ironia. Parece que suas palavras de sabedoria são bastante verdadeiras também em relação às crianças soviéticas e seus sonhos de infância.
Alguns dos sonhos das crianças soviéticas eram pouco práticos, associados a um futuro não muito distante. Muitas vezes, esses sonhos diários eram cheios de medo e preocupação.
1. Paz
“Tendo crescido na União Soviética na década de 1980, eu estava o tempo todo ansiosa com a perspectiva de uma guerra nuclear com os Estados Unidos, o inimigo de meu país”, diz a russa Natasha, de 45 anos. “Eu sonhava todos os dias com algo que erradicasse a ameaça para eu me preocupar com ela, por mais estranho que possa parecer. Quando era criança, via a Guerra Fria como uma ameaça existencial profundamente pessoal.”
A crise dos mísseis de Cuba foi um grande confronto que levou os Estados Unidos e a União Soviética à beira de uma guerra nuclear no início dos anos 1960. Moscou posicionou mísseis nucleares soviéticos em Cuba em resposta à implantação de mísseis de classe semelhante dos EUA na Turquia.
Esta não foi a única vez em que o confronto entre Moscou e Washington atingiu seu cume. Em 1983, o Kremlin estava preocupado com uma série de treinamentos de guerra da Otan em grande escala (conhecidos como “Able Archer 83”), com o envio de dezenas de milhares de forças dos EUA para a Europa.
Como resposta, as forças nucleares soviéticas foram imediatamente colocadas em alerta máximo, para poderem responder à ameaça apresentada pela Otan. Felizmente, a ameaça era menor do que parecia.
2. Acampamento de verão
Assim como os escoteiros nos EUA, as crianças soviéticas levaram uma vida ativa e vibrante. “A infância soviética é inseparável do acampamento de verão: acordar ao som da corneta, patrulhar a área, participar de muitos concursos, fogos de artifício, passar pasta de dente nas crianças que dormiam mais cedo e outras aventuras”, lembra Tatiana, 47 anos.
“Se seus pais não te mandassem para o acampamento de verão, você tinha que ficar só na sua dátcha (casa de campo na Rússia), fazendo casas na árvore ou tiaras de flores. No inverno sempre tínhamos patinação, esqui, trenós, brincadeiras com bolas de neve e bonecos de neve. Minha infância soviética foi repleta de esportes, museus, teatros, leituras e filmes raros. A gente raramente assistia à TV.”
O acampamento de verão era uma ótima maneira de passar as férias escolares, fazer novos amigos, aperfeiçoar as habilidades de comunicação e desfrutar de um pouco de liberdade dos pais. As crianças soviéticas simplesmente sonhavam em passar as férias no campo “Artek”.
Nas décadas de 1970 e 1980, este famoso acampamento juvenil localizado na Crimeia, no litoral do Mar Negro, vivia de acordo com os valores comunistas fundamentais. Hoje em dia, o local ainda é um popular balneário.
3. Animais de estimação
As crianças soviéticas passavam muito tempo lendo, e as estantes de seus pais estavam cheios de livros. A russa Aleksandra, por exemplo, nunca pode ir para o acampamento “Artek”, mas tinha carta branca para ler todos os livros que encontrasse pela casa. Foi assim que ela leu “Karlsson no telhado”, da sueca Astrid Lindgren. Como muitos de seus amiguinhos, ela riu histericamente com o best-seller infantil sobre um homenzinho gordo que adorava pregar peças nas pessoas e dizia que era o melhor do mundo em tudo.
O livro fez com que dezenas de crianças soviéticas olhassem para seus telhados para ver se Karlsson estava morando ali. Uma parte favorita do livro era quando o protagonista, Smidge, um menino de sete anos, finalmente ganhou um animal de estimação de presente de aniversário, enquanto Karlsson argumentava: “Mas eu sou melhor do que um cachorro!”
Como Smidge, Aleksandra queria um cachorro mais que qualquer coisa no mundo. Mas ter um animal de estimação era uma grande responsabilidade para a qual muitas crianças não estavam preparadas. Mas quem tinha um cachorro ia passear com ele cinco vezes por dia, só para exibir seu tesouro para as outras crianças da vizinhança.
4. Roupas, chicletes e brinquedos
As crianças soviéticas usavam roupas simples, enfadonhas e desconfortáveis. Comprar algo diferente era um verdadeiro problema. Havia roupas importadas nas lojas, mas os clientes comuns nunca sabiam quando e onde elas estariam disponíveis.
“Minha mãe escreveu uma senha na palma da mão dela e passou horas na fila para me comprar um par de sapatos de couro vermelho feitos no Japão”, lembra Vera, 39. “Usei esses sapatos glamorosos apenas duas vezes antes de serem roubados no vestiário da minha escola. Quase chorei!”
Anos se passaram, mas Dima, 52, ainda se lembra de seu longo casaco de inverno soviético. “Era um pesadelo, pesado como um tijolo. Eu me sentia desamparado e impotente quando usava”, conta. “Eu fiquei nas nuvens quando meu pai me trouxe um casaco marrom da Suécia. Tinha mangas amarelas descoladas e era leve como uma pena.”
“Eu também me lembro do quanto eu queria roupas estilosas, alguma coisa sofisticada”, diz Elena, 40. “Fui uma criança soviética por pouco tempo, mas era muito sortuda. Nasci na Alemanha Oriental e vivi lá por alguns anos, e assim ganhei todas as roupas e brinquedos mais lindos que se podia comprar na época. Não eram muitos, mas eram os melhores”, lembra Diana.
Alguns pais tinham autorização para viajar ao exterior e, na volta, traziam uma grande variedade de presentes, de gomas de mascar e borrachas escolares a mochilas e bonecas Barbie.
“Uma boneca Barbie de verdade! Comprei uma da Cindy com uma cabeça de Barbie de verdade e corpo de plástico da outra, um suco estranho de cor extravagante (era de kiwi, verde brilhante, incrível, e ainda me lembro da caixinha até hoje), batata frita, refrigerante...”
Quem não podia se dar ao luxo de viajar para o exterior só podia sonhar com “La Dolce Vita”.
5. Motoneta
Alguns meninos soviéticos sonhavam com conjuntos elétricos de trilhos de trem e motoneta alemães. Vadim, hoje com 51 anos, não foi exceção. Ele diz que quase todos os meninos em sua infância soviética tinham uma bicicleta. “Mas uma motoneta era coisa séria, a última moda, o sonho dos sonhos.”
Afinal, sonhar é uma forma de planejar, por isso, alguns adolescentes práticos juntavam garrafas de vidro e levavam às lojas de reciclagem para conseguir algum dinheiro com o sonho da motoneta própria. “No longo prazo, os meninos ficavam bastante ocupados e alguns deles até conseguiam comprar uma motoneta no final.”
Victoria, 41, queria uma motocicleta por um motivo diferente. Ela era fã de cinema e passou as férias de verão na vizinha Letônia quando, por acaso, assistiu “A festa” (‘La Boum’), uma comédia francesa estrelada por Sophie Marceau.
O filme, que conta a história de uma garota de 13 anos (chamada, aliás, Vic) que se apaixona e continua a viver como se não houvesse amanhã, instantaneamente se tornou um clássico entre os adolescentes soviéticos. Apesar da diferença de culturas, era fácil se identificar com os protagonistas.
“Eu tinha uns 12 anos quando assisti. Ainda me lembro de duas coisas: a queda que Vic tinha por Mathieu, que dirigia uma motoneta, e a incrível música principal, de Richard Sanderson, ‘Reality’. Na letra, ele dizia: ‘Os sonhos são minha realidade. O único tipo de fantasia real...’.”
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