Como negros chegaram pela primeira vez à Rússia

História
GUEÓRGUI MANÁEV
No Império Russo, pessoas negras não eram escravizadas nem sofriam discriminação. Além disso, o traje dos mouros da corte imperial era o mais suntuoso de todos os uniformes da corte sob os tsares.

A Rússia não teve escravos negros, ou escravos de qualquer tipo, no sentido literal da palavra. Todas as necessidades de trabalho da classe dominante eram atendidas por meio de um sistema conhecido como servidão – ao contrário dos escravos, os servos possuíam propriedades e eram sujeitos à lei. Por esse motivo, os primeiros negros que chegaram e habitaram a Rússia desempenhavam uma função diferente – eram vistos como um objeto de admiração, curiosidade e um elemento exótico do exterior. 

Na pintura de Vassíli Surikov “Manhã da Execução dos Streltsy”, atrás do jovem tsar Pedro, há uma carruagem estofada com veludo vermelho e, dentro dela, é possível ver um rosto feminino: uma das mulheres da realeza veio com Pedro para ver a execução. E nos estribos da carruagem estão dois pajens (criados) em turbantes com penas azuis.

Seria um deles Abram Gannibal (1696/ –1781), mais conhecido como o bisavô do poeta Aleksandr Pushkin? Improvável. Quer Gannibal tenha sido trazido da Europa por Pedro em 1698, ou dado a ele como um presente em 1705, ele nunca foi um membro da comitiva das ‘tsarevnas’ (princesas russas).

Isso significa que ter pajens negros já era tradição no final do século 17? Sim, é verdade, e os nomes dos primeiros pajens negras do tsar Pedro quando era jovem e morava em Moscou são mencionados pelo historiador Ivan Zabelin: Tomos, Sek e Abram. Infelizmente, isso é tudo o que se sabe sobre eles.

“Ele era negro como a noite”

No séquito de reis europeus, criados negros apareceram pela primeira vez na época das Cruzadas. Também foram empregados nessa mesma função na Rússia. Há evidências de que havia mouros residindo nos apartamentos da Irmã Martha, mãe do primeiro tsar dos Romanov, Mikhail Fiodorovitch. Na ala feminina do palácio, os negros desempenhavam as mesmas funções que os anões, bobos da corte e peregrinos errantes – eram objetos de espanto e entretenimento para as mulheres entediadas da família real, forçadas a passar quase a vida toda trancadas em seus aposentos.

Os tsares também mantinham mouros para entretenimento. De acordo com o historiador Ivan Zabelin, Mikhail Fiodorovitch teve o mouro Murat e, mais tarde, David Saltanov morando em sua corte, aos quais vestia com roupas suntuosas. Entre os servos do tsar Mikhail estavam mouros que haviam chegado à Rússia como treinadores de elefantes (os governantes orientais adoravam dar elefantes de presente aos russos). Segundo os registros, em 1625 e 1626 um mouro chamado Tchan Ivraimov “divertiu” o tsar, mostrando-lhe os truques que seu elefante podia realizar.

Uma mulher negra vivia na corte da consorte de Michael, a tsarina Evdokia, e Aleksêi Mikhailovitch (tsar Aleksêi da Rússia) mantinha um mouro chamado Saveli, que ele enviou para aprender russo – e este último aprendeu a ler, escrever e cantar versos sagrados em russo em apenas um ano (na época, a língua russa era mais difícil do que hoje). Ainda assim, no século 17, os mouros da corte eram educados como espécie de diversão. Foi o filho de Aleksêi – Pedro, o Grande, que deu aos mouros e pessoas de outras nacionalidades, a oportunidade de progredir e fazer carreira na Rússia.

Se há algo em que Abram Gannibal foi pioneiro entre os negros na Rússia, foi em sua carreira. No início, antes de 1714, ele foi mencionado ao lado de bobos da corte, porém logo depois, o tsar Pedro deve ter discernido as habilidades do jovem e passou a confiar-lhe várias tarefas. Mais tarde, o enviou para estudar engenharia na França. Nos anos posteriores, Gannibal ensinou matemática e engenharia aos russos e, sob a imperatriz Elizabeth Petrovna, ficou encarregado de toda a engenharia na Rússia.

Sem dúvida, Gannibal foi um indivíduo notável – no final da vida, tornou-se general e pai de uma grande família (acima, é possível ver um retrato de seu filho Ivan). Também foi a primeira pessoa na Rússia a cultivar batatas em sua propriedade.

Mouros da Corte Imperial

Em meados do século 18, já havia alguns negros com cargos na corte: Catarina 1ª tinha seis mouros (geralmente a acompanhavam quando ela descia da carruagem); na corte de Anna Ioannovna, havia quatro; além disso, mensageiros negros, foguistas negros e músicos negros eram encontrados durante o tempo de Elizabeth Petrovna. Os mouros vigiavam Elizabeth quando ela saía para caçar, seu passatempo favorito.

Sob Catarina 2ª, quando o número de mouros nomeados para a corte atingiu duas dúzias, uma posição especial foi instituída: Mouro da Corte Imperial. No início, os detentores desse status eram chamados de “Árapes”, mas no século 19 passou-se a usar a grafia “árabes”, embora seja improvável que houvesse algum árabe étnico entre eles. Os homens mais altos e com a pele mais negra eram selecionados para o trabalho. Ao assumir o cargo, também tinham que adotar o Cristianismo – fosse ortodoxo, ou católico, já que ambos era permitidos).

Os mouros acompanhavam a realeza em suas viagens, e seu principal dever era abrir as portas para o monarca nas cerimônias oficiais. Os mouros da Corte Imperial possuíam os uniformes mais suntuosos da corte. De acordo com o professor Igor Zimin, “no final do século 19, sob Aleksandr 3º, os uniformes cerimoniais dos mouros eram os mais caros entre todos os funcionários da corte e custavam ao tesouro 543 rublos”. Apenas o uniforme do fourrier, que era responsável por todos os criados (408 rublos), e do cossaco da câmara (guarda-costas) de Sua Majestade (418 rublos), chegavam perto desse custo. A título de comparação, uma veste de um homem comum custava de 10 a 15 rublos na época. Os salários dos mouros da Corte Imperial variavam de 600 rublos (mouro júnior) a 800 rublos (mouro sênior) por ano.

“Sênior” e “júnior” referiam-se apenas a graduações dentro da mesma categoria. No século 19, as crianças negras – “pequenos Árapes” – não eram mais mantidas na corte; as pessoas que vinham servir como mouros na Corte Imperial eram todas adultas. Quando John Quincy Adams chegou a São Petersburgo em outubro de 1809 como ministro dos Estados Unidos na Rússia, os primeiros negros norte-americanos compareceram à Corte Imperial. Entre eles estava Nero Prince, um dos fundadores da Loja Maçônica Africana na América. Sua esposa, Nancy Prince, o acompanhava. A família do mouro da Corte Imperial tinha um estilo de vida confortável e até criados.

Nancy deixou uma breve descrição de sua visita e dos costumes russos. Ela testemunhou muitas celebrações e cerimônias na Corte Imperial, presenciou a enchente de 1824 em São Petersburgo e a revolta dezembrista de 1825. Surpreendeu os russos com sua recusa a dançar em festas, acreditando que isso era um pecado para um cristão. Por mais que os russos tentassem persuadi-la, Nancy era irredutível. Em 1833, voltou para os EUA, pois considerava o clima de São Petersburgo muito severo. Em 1836, o marido a seguiu, após servir na Corte Imperial Russa por quase 20 anos.

Narguilé de Sua Majestade

No Palácio de Inverno, os mouros nomeados para a corte costumavam trabalhar no Salão Árabe. Sua rotina diária não era onerosa – ocasiões cerimoniais em que eles tinham que abrir portas não aconteciam com tanta frequência. Às vezes, eram solicitados a acompanhar os convidados do palácio aos aposentos do imperador.

Durante o reinado de Aleksandr 2º, os mouros tinham outra tarefa permanente – preparar o narguilé para o imperador. Aleksandr tinha problemas digestivos e fumar o ajudava com a enfrentar o mal-estar. Além disso, o imperador gostava de fumar e valorizava os mouros da corte pela habilidade com que preparavam o tabaco para ele.

Outra função tradicional que os mouros desempenhavam era colocar presentes debaixo da árvore de Natal do Palácio de Inverno: a ideia era que os mouros simbolizassem os magos de oriente, Três Reis Magos, que traziam presentes no Natal.

No início do século 20, os gastos com os mouros na assistência à corte foram reduzidos, e apenas quatro permaneceram em serviço permanente.

Os descendentes dos mouros da Corte Imperial, que costumavam ter esposas russas, ainda moram em São Petersburgo.

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