O segundo tenente W. Robertson e o tenente A. Sevachko se abraçam em 26 de abril de 1945.
William E. Poulson/Wikipedia/Getty Images“Para uso exclusivo de funcionários militares”. É isto que se lê na introdução de um guia da União Soviética de 1944. Entre 1943 e 1944, ninguém poderia adivinhar como a Segunda Guerra Mundial terminaria. Assim, o exército dos EUA resolveu ensinar seus soldados e oficiais como lidar com os russos.
Devido à propaganda política da década de 1930, os norte-americanos ainda viam os russos como inimigos, apesar de as duas nações estarem lutando juntas contra Hitler. No final das contas, houve apenas muito poucos encontros entre as tropas norte-americanas e russas (o mais famoso deles, em 25 de abril de 1945, quando contingentes dos dois países se reuniram no rio Elba, próximo a Torgau, na Alemanha).
Assim, este manual tem maior valor na atualidade como fonte para se descobrir como os norte-americanos viam os russos, do que então.
‘Gente amigável e apropriada’
Estas recomendações, porém, não são para um exército ocupante. Pelo contrário, foram feiras para um contingente militar amigável. O livro apresenta um ângulo sem precedentes de como o exército dos EUA via a URSS e sua gente, e é interessante analisá-lo sob a luz das informações que se tem na atualidade.
Em suas primeiríssimas linhas, o livro apresenta o escopo do problema: “Em serviço na URSS, o maior país da face da Terra, você pode ser alocado em um clima subtropical ou sob uma chuva de pedras no círculo do Ártico... As pessoas variam tanto quanto o clima”.
Os autores ressaltavam que a destruição e pobreza na URSS eram causadas pelas guerra: “Algumas pessoas podem parecer estar vestidas pobremente, mas elas têm vestido essas mesmas roupas por quase três anos... Os russos tiveram que se virar sem estoques de tecido para que fossem estabelecidas fábricas que pudessem produzir bens mais necessários”.
Pelo caminho, os autores não perderam a chance de louvar sutilmente a economia dos EUA: “As rações na Rússia têm que ser muito mais rígidas e severas que na América: as pessoas não recebem mais do que é considerado suficiente para o tipo de trabalho que estejam fazendo”.
Apesar disto, lê-se no livro, “você encontrará russos muito orgulhosos de seu país”.
Os russos, que são “amigáveis e apropriados”, são o principal tema do livro, e seções como “Economia”, “’Pesos e medidas” e “Uniformes soviéticos e patentes do Exército” são interessantes aos historiadores contemporâneos.
Alguns dados sobre geografia, porém, são ressaltados de acordo com as necessidades militares. Por exemplo: “Por razões desconhecidas, mas expressadas por alguns como a curiosa ‘inclinação da terra’, as margens dos rios russos são consideravelmente mais altas que as margens orientais. Este fato representou dificuldades para o Exército Vermelho quando ele se dirigia aos alemães na porção oeste da Ucrânia”.
‘Não ria ou encare’
Alguns costumes russos são descritos como já ultrapassados: “Os homens russos podem abraçar ou beijar durante encontros. Esses costumes foram estabelecidos de longa data. Não ria ou encare sua estranheza”.
Os homens russos ainda se abraçam quando se encontram na atualidade – se forem bons amigos. Mas os famosos beijaços na boca russos já se foram há muito tempo, apesar de às vezes eles poderem ser encontrados em comunidades emigrantes.
“Quando você vir uma mulher que conheça, fale primeiro, ou ela não o cumprimentará (é extremamente mal-educado assobiar).”
Quanto ao assobio, sim, você ainda pode levar um olhar de desaprovação (no mínimo dos mínimos), mas, quanto aos cumprimentos, as russas já se tornaram mais cosmopolitas há muito tempo.
A vodca é considerada a “bebida nacional da União Soviética”, e o manual diz que ela é normalmente “seguida de um pedaço de pão preto”, o que é mais realista que a citação que se segue, dizendo que as entradas russas são geralmente “caviar e carne temperada”.
Na verdade os dois últimos alimentos mal foram vistos pela maioria dos russos durante a Segunda Guerra. Outra bebida nacional é o chá, e “os russos colocam um cubo de açúcar na boca e bebem o chá filtrado através do açúcar”.
Sim, nossas bábuchkas (vovós) faziam isto, e isto era possível porque o chá do século 20 era muito grosso, diferente do de hoje.
No livrinho, também ficamos sabendo que nos anos 1940 os cigarros eram escassos na URSS e a maioria dos homens fumava “papirosa”: “com oito a doze centímetros de comprimento, dois terços deles sendo um tubo de cartão oco e um terço dele, uma extensão de papel do tubo preenchida com tabaco”.
Sim, eles ainda existem na Rússia, mas são fumados apenas por uma pequena quantidade de amantes do retrô.
O livro aponta para o fato de que, mesmo durante a guerra, os russos iam ao cinema e ao teatro porque eram “artísticos por natureza”, mas que o único modo de “conhecer os russos” era “lendo sua literatura.
Os autores relembram também do heroísmo dos artistas russos: “A maior parte dos principais cantores, atores e dançarinos fizeram turnês pelos campos e bivaques do exército. Muitos deles foram mortos na frente de batalha”.
Grande bandeira vermelha = perigo!
De todos os perigos que aguardavam as tropas norte-americanas na URSS, o mais grave eram as infecções e doenças venéreas que assolavam o país. Os soldados eram aconselhados a serem extremamente cuidadosos.
Além disso, havia proibições mortais: as tropas eram aocnselhadas a parar quando houvesse a instrução de descanso (“os soldados soviéticos foram treinados para atirar se você não parar”) e a não fazer piadas sobre os líderes soviéticos.
Não havia indicação de punições, mas sabe-se que, em 1944, fazer piadas sobre Iôssif Stálin ou seus vices poderia ter graves consequências.
Há conselhos engraçados também: “leve papel higiênico com você. Papéis de todos os tipos são escassos”. Outros, eram úteis: “Seja generoso com seus cigarros”.
Até hoje, a mesquinhez em relação ao cigarro é considerada um comportamento muito ruim na Rússia, e nos tempos da guerra era dez vezes pior. Também se aconselhava a apertar as mãos: o cumprimento da moda do homem russo.
Alguns conselhos, porém, eram totalmente bobos: “Não chame os russos de ‘továrich’ [camarada]. Este cumprimento só pode ser usado entre cidadãos soviéticos. Use no lugar disto a palavra ‘gospodín’, que significa ‘senhor’”.
A informação é tão despropositada que poderia ter levado a algum conflito: “gospodín” é se referiam aos nobres na Rússia Imperial. Dizer isto a um cidadão comunista soviético poderia levar a uma situação muito esquisita.
No final, o livro toca em um ponto louvável que pode ser aplicado à Rússia contemporânea: “Se você for sensato e usar a cabeça, normalmente encontrará pessoas na URSS com quem será fácil se relacionar”.
Quer saber mais sobre o fim da URSS? Então leia O segredo da Pepsi para desbravar o mercado soviético .
Autorizamos a reprodução de todos os nossos textos sob a condição de que se publique juntamente o link ativo para o original do Russia Beyond.
Assine
a nossa newsletter!
Receba em seu e-mail as principais notícias da Rússia na newsletter: