Como as sapatilhas azuis se tornaram a quintessência dos calçados russos?

Estilo de vida
ALEKSANDRA GÚZEVA
Não, não é uma questão de moda — na Rússia, esta é uma necessidade prática usada durante parte significativa do ano.

Todos os russos que cresceram durante a época soviética ou na década de 1990 guardam uma vívida memória de infância: estar com os colegas de escola antes de entrar em um museu – seja uma galeria de belas artes, uma propriedade rural de um nobre ou mesmo o famoso Hermitage. Nessas horas, a excitação de escapar às aulas regulares da escola era muitas vezes temperada pela ideia de aguentar o que parecia ser uma viagem monótona.

No entanto, a parte mais memorável dessas visitas ao museu não era a arte ou a história – mas a experiência de percorrer os corredores com enormes sapatilhas de feltro. Mesmo usando botas de inverno volumosas, os pés das crianças escorregavam nesses calçados gigantes, presos apenas por um elástico frágil. Para uma criança, essas sapatilhas lembravam esquis pré-históricos — permitindo nada mais do que um andar farfalhante e cauteloso, semelhante a espantar arraias no oceano.

Esses calçados, conhecidos como “bakhili” em russo, eram escolhidos em uma grande cesta na entrada do museu — e encontrar um par que combinasse era uma questão de pura sorte. No final da visita, eles seriam jogados de volta na cesta, talvez para serem usados por outros grupos nos próximos anos, criando uma conexão única, embora um tanto peculiar, entre gerações.

“Pés feios e felizes” à moda russa

O conceito de “pés feios e felizes” não é exclusivo da Rússia. A revista norte-americana “New Yorker” certa vez publicou um ensaio intitulado ‘Happy Ugly Feet’ (“Felizes pés feios”) sobre as sandálias Birkenstock – um estilo associado à preferência pelo conforto em detrimento da aparência.

Assim como as Birkenstocks, que se tornaram um símbolo cultural explorado inclusive no filme “Barbie” (2023), os “pés feios e felizes” da Rússia são personificados nessas sapatilhas. Em russo, a palavra ‘бахилы’ (‘bakhili’) também pode significar botas de pescador impermeáveis, uma referência ao seu propósito funcional: não manter os pés secos, mas para proteção.

Contra a lama eterna

Durante cerca de nove meses do ano, a Rússia convive com neve derretida – uma mistura de chuva, neve e restos da vida urbana (leia mais sobre este fenômeno aqui). Os sapatos ficam inevitavelmente encharcados e enlameados, mesmo em ambientes urbanos.

Esta realidade levou a uma norma cultural —  os russos normalmente tiram os calçados e preferem usar chinelos ao entrar em casa.

Mas e nos espaços públicos? Sem ‘bakhili’, os pisos exigiriam limpeza constante para combater a sujeira trazida de fora. A solução? Sapatilhas!

Uma tradição prática

Historicamente, os russos recorreram galochas para administrar as condições externas. Datados do século 19 e populares até à década de 1960, esses calçados de borracha eram usados sobre o sapato normal, tratando-se, assim, de uma abordagem prática ao rigoroso clima russo.

Esses itens eram tão onipresentes que até a corte dos Romanov usava galochas da fábrica de Treugolnik, enquanto os camponeses as usavam sobre botas valenki para se protegerem da umidade.

Na época soviética, os museus introduziram sapatilhas de feltro para evitar danos aos pisos mais delicados, e essa prática de trocar de calçados estendeu-se aos locais de trabalho e às escolas. Não é incomum ver alunos com um par de calçados extra ao lado dos livros escolares.

O fenômeno moderno do ‘bakhili’

Hoje, os ‘bakhili’ ainda são muito comuns em clínicas, hospitais, creches e em alguns museus e salões durante a estação fria.

Com o tempo, estas sapatilhas evoluíram de opções reutilizáveis para variantes de plástico descartáveis — ainda como solução para manter os espaços públicos limpos. E é assim que elas são hoje em dia:

Ao entrar nos locais mencionados (e em muitos outros), você normalmente encontrará duas cestas – uma rotulada como “bakhili limpa” e outra – “bakhili suja”, disponíveis para uso por um custo mínimo ou gratuitamente. A sua presença é uma forma simples, mas eficaz de manter a limpeza, reduzindo a necessidade de higienização constante.

Quando chega o verão, as cestas desaparecem, apenas para retornar com o início do outono chuvoso — dando continuidade a uma tradição que, embora peculiar a estrangeiros, é parte profundamente arraigada da vida russa.

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