Como é a vida na região de fronteira da Rússia com a China?

Legion Media
Dando um passeio na margem do rio Amur, em Blagoveschensk, tem-se a visão de um país bem diferente do lado oposto. Aqui, Rússia e China estão separadas por 750 metros. Anastassia Kuknerik nasceu e cresceu na cidade – e ela nos conta como é a realidade local.

Antes da pandemia de covid-19, era possível ir para a cidade chinesa de Heihe de balsa. Muitos moradores de Blagoveschensk voltavam com presentes para parentes ou amigos, além de uma grande variedade de mercadorias em sacolas grandes. Para não ter que pagar pela entrega via barco no Amur, um dos rios mais longos do mundo, os comerciantes economizam dinheiro pedindo aos turistas que transportem as mercadorias chinesas destinadas à venda na Rússia. Isso porque os turistas, ao contrário de negociantes, estão isentos de impostos.

Monumento às compras em Heihe

Na Rússia, as pessoas que carregam essas sacolas com mercadorias são apelidadas de kirpitchi [tijolos; singular, kirpitch], e os comerciantes, de fonari [lanternas]. Então, todos aqui entendem o significado da expressão "no fim de semana vou para China como um tijolo".

Blagoveschensk está situada na região de Amur, no Extremo Oriente da Rússia, a cerca de 7.900 quilômetros de Moscou. É possível chegar à cidade por via aérea – um voo de Moscou leva cerca de oito horas. De trem, a viagem leva seis dias. Estou acostumada a voar, que é muito mais rápido e ainda mais barato. Há também passagens [de avião] estudantis subsidiadas que custam metade do preço da passagem de trem.

A população de Blagoveschensk é de 250.000 habitantes, e esse número vem crescendo graças ao Cosmódromo de Vostótchni, perto da cidade de Tsiolkovski. Por isso, a região costuma atrair engenheiros da Turquia, Bielorrússia, Cazaquistão, Uzbequistão e outros países Alguns desses especialistas chegam a residir na região de Amur.

O cosmódromo possui visitas guiadas, mas para participar é preciso concluir várias etapas, independentemente de ser cidadão russo ou estrangeiro:

  1. Para reservar uma excursão, primeiro é preciso preencher um formulário com os dados de passaporte ou certidão de nascimento.
  2. Depois enviar a inscrição para Moscou, onde será analisada no prazo de um mês. É importante que o candidato não tenha antecedentes criminais; caso contrário, não receberá permissão.
  3. Ao receber a confirmação, é hora de decidir como viajar para Vostótchni. Há ônibus que levam direto ao local, mas também dá para viajar de carro de forma independente.

Fronteira pacífica e amigável

É fácil encontrar e experimentar a cultura chinesa em Blagoveschensk: só de ir até a margem aterro e ver Heihe do outro lado do Amur já se tem um gostinho. À noite tudo fica bem iluminado. Os edifícios de Heihe exibem,  às vezes, mensagens para o povo de Blagoveschensk. Abaixo, por exemplo, estão os cumprimentos de Ano Novo aos moradores da cidade russa – eu filmei isso em janeiro de 2022.

A proximidade entre as duas cidades tão diferentes ajuda significativamente o turismo local. Pelo menos, assim era antes da covid. Os russos viajavam para Heihe de balsa, e aqueles que são moradores registrados oficialmente no Território de Khabarovsk, ou nas regiões de Amur e Tchita, não precisam de visto. Isto não se aplica, porém, a moradores de outras regiões russas.

Arco em Blagoveschensk em celebração à visita de Nicolau 2º em 1891

A viagem dura 15 minutos. Atrasos e longas filas na alfândega são comuns, principalmente durante os feriados. A última vez que fui a Heihe foi em janeiro de 2020 – logo antes do lockdown. Minha família e eu esperamos duas horas para passar pela alfândega, mas isso nem é tão ruim.

Nova ponte sobre o rio Amur

Recentemente foi inaugurada uma ponte internacional conectando as duas cidades. Aberta em 10 de junho, serve apenas para tráfego comercial por enquanto; viajantes poderão usá-la em 2025. Hoje vê-se a ponte Blagoveschensk-Heihe à distância de um dos barcos turísticos – eles partem três vezes ao dia e no final retornam à cidade. A vista é impressionante.

Vista da nova ponte a partir de um barco turístico

Devido às restrições impostas desde a pandemia de covid-19, não é possível atravessar o Amur para visitar Heihe. Agora só é possível voar para lá via Xangai ou Pequim. As conexões diretas foram suspensas em 2020, e os locais mal podem esperar pela reabertura.

Cooperação e amizade

Confeitaria em Heihe

Antes das restrições de covid, Blagoveschensk e Heihe realizavam regularmente celebrações de cooperação intercultural. A Feira de Arte e Cultura Russo-Chinesa acontece nas duas cidades todos os anos desde 2010. Artistas e conjuntos dos países se apresentam no festival.

O objetivo do festival é chamar a atenção dos turistas para o que há de especial e distintivo nas culturas nacionais dos povos da China e da Rússia. Não só profissionais se apresentam, mas também estudantes. Por exemplo, vários colegas meus estavam no grupo de canto Kolosok. Eles cantavam regularmente no festival em Heihe e até trouxeram prêmios para casa.

O festival aconteceu novamente em 2021 – com respeito às restrições de covid – mas sem a participação de visitantes da China. Foram organizados eventos de encontro com artistas e master classes, e a cerimônia oficial decorreu on-line. A  Feira de Arte e Cultura Russo-Chinesa também deve ser realizada em 2022. Em maio, foi anunciado que o evento seria transferido para o segundo semestre, embora já tenha acontecido palestras e seminários durante o verão. Aguardamos a abertura oficial!

Influência chinesa

Comida de rua em Heihe

As duas cidades gravitam uma em direção à outra há 73 anos – Blagoveschensk foi fundada em 1858, e Heihe, em 1949.

Blagoveshchensk tem atualmente 42 restaurantes chineses. A tradição de pedir comida chinesa para ocasiões especiais segue firme na cidade. Nossa família gosta de salada Heihe, chisanchi e carne com molho agridoce. Minha mãe, às vezes, até faz esses pratos!

Carne ao molho agridoce

Produtos chineses podem ser encontrados em todos os supermercados de Blagoveschensk. O macarrão instantâneo é particularmente popular, por ser mais picante que os seus similares russos. Cosméticos e produtos de limpeza domésticos chineses também têm demanda. "Se é chinês, é de boa qualidade", diz minha mãe.

O mercado chinês é onde o povo de Blagoveschensk vai desabafar. Pechinchar é altamente recomendado, e pode-se negociar um preço melhor para qualquer item. "Se você pechinchar com um chinês, significa que você o respeita", minha avó costumava dizer.

Comida chinesa

O mandarim é ensinado nas escolas de Blagoveschensk, e há departamentos na Universidade Estadual de Amur e na Universidade Pedagógica do Estado de Blagoveshchensk voltados para formação de tradutores e professores do idioma. Estudantes da China são comuns, assim como também há muitos russos em Heihe. Eu estudei mandarim da 5ª à 8ª série na escola. Lembro de muitas das letras, o facilita na hora de entender as listas de componentes nas embalagens e até para conversar um pouco com os chineses.

Influência russa em Heihe

A proximidade com a fronteira russa também teve impacto na vida em Heihe. Supermercados chineses estocam produtos russos. Chocolate Alenka e leite de vaca são os favoritos. Este último não está à venda na China, onde o leite de soja é preferido e amplamente disponível.

Shopping em Heihe

Estudantes russos com conhecimento de mandarim podem fazer intercâmbio de estudos em Heihe. Havia vários programas educacionais disponíveis antes do lockdown. Os alunos não apenas cursavam intensivos de idioma, mas também apendiam o exercício físico chinês conhecido como Qigong e visitavam os pontos turísticos de Heihe. O mais famoso deles é a Praça da Alimentação, onde, claro, é possível comer alguma coisa. No entanto, o edifício mais importante é a Biblioteca Púchkin – o único porém é que todos os livros estão em mandarim.

Outro exemplo de cooperação intercultural foi a abertura do Museu Aleksandr Tikhomirov, artista que pintava ícones em persianas antigas. Este tipo de pintura é chamado okonopis [literalmente, pintura de janela, um jogo de palavras com o termo ikonopis, pintura de ícones]. Tikhomirov nasceu na região de Moscou em 1956, mas viveu em Blagoveschensk desde 1984.

O Museu de História Local de Amur tem uma exposição dedicada à arte de Tikhomirov, enquanto em Heihe foi inaugurado um museu inteiro dedicado ao seu trabalho. Há também guias chineses que falam russo fluentemente.

As vidas culturais de Blagoveschensk e Heihe se misturaram e enriqueceram mutuamente. Embora sejam principalmente pessoas que se mudaram permanentemente antes das restrições de covid, os moradores esperam que a vida retome em breve seu curso natural e que as visitas recíprocas de um lado do rio ao outro voltem a se tornar mais frequentes. 

Uma coisa é certa: a nova ponte vai facilitar isso.

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