Na década de 1960, Tolkien já tinha ganhado fama na URSS. Seus livros eram trazidos do exterior pelos poucos que podiam fazer essas viagens e depois passavam de mão em mão entre aqueles que sabiam inglês.
Entre os primeiros leitores do autor estava Boris Grebenschikov, líder da lendária banda de rock “Akvarium”. O músico diz que foram justamente os romances de Tolkien que plantaram a sementinha da fantasia nele e que eles tiveram enorme influência sobre suas primeiras músicas. Até o nome do grupo na contracapa do álbum “Treugolnik” é escrito com fontes de escrita élfica — “Tengwar” e “Cirth”.
As versões russas da série “O Senhor dos Anéis” eram feitas por tradutores amadores. Os textos seriam digitados com papel carbono e depois encadernados manualmente. Pelo menos oito traduções completas ou parciais foram feitas na era soviética, e a mais difundida delas foi feita em 1976 por Aleksandr Gruzberg, um filólogo da cidade de Perm.
Mas foi apenas em 1982 que uma versão infantil resumida do primeiro romance da série saiu oficialmente publicada por uma editora de Moscou. Nela, os tradutores buscaram transformar a história em um conto de fadas. Nos anos seguintes, jovens leitores buscavam avidamente pela sequência do livro em livrarias e bibliotecas — mas ela não existia. O romance completo só saiu no início da década de 1990.
Uma das primeiras traduções de “O Senhor dos Anéis” saiu em 1966 e era também uma obra de “fan fiction”. Mas a autora dessa versão, Zinaida Bobir, fez mais do que apenas encurtar o texto: ela introduziu novas linhas à história e até um novo artefato, a Coroa de Prata. Um dos livros de Zinaida contém até mesmo elementos de ficção científica — os acontecimentos do romance são contados por personagens do romance “Éden”, do autor polonês Stanislav Lem!
Neste enredo, arqueólogos do futuro descobrem o Anel de Sauron. Com o auxílio de equipamentos, eles descobrem sua história e tentam dar uma explicação científica ao ocorrido.
Bobir sabia bem o que estava fazendo ao juntar os dois livros em uma só narrativa: ela simplesmente facilitava a tradução — na época, havia um boom de ficção científica na URSS, mas o gênero fantástico ainda era totalmente desconhecido.
Como resultado, a versão de Bobir (aquela sem o sci-fi) foi lançada pela primeira vez apenas na década de 1990, quando a popularidade do gênero cresceu, assim como a de Tolkien.
Outras “fanfics” se seguiram à dela, entre elas “O anel da escuridão”, de Nik Perumov - uma sequência não oficial de “O Senhor dos Anéis”. Perumov começou imitando Tolkien, mas encontrou sua própria voz, tornando-se um dos escritores de fantasia mais populares da Rússia.
O romance “O Hobbit” era mais próximo do conto de fadas, e por isso teve mais sucesso na URSS. A primeira tradução foi lançada em 1976, seguida três anos depois por uma produção teatral infantil em São Petersburgo intitulada “A Balada do Célebre Bilbo Baggins”, que ficou quase 10 anos em cartaz e foi até adaptada para a TV — sem qualquer pagamento de direitos autorais ao criador, como acontecia com frequência na URSS.
Em 1985, um canal de TV de Leningrado (atual São Petersburgo) apresentou uma série sobre “O Hobbit” intitulada “As Viagens Fantásticas do Sr. Bilbo Baggins” adaptada ao teatro e filmada. A história foi encurtada e os figurinos e a produção geral eram primitivos, mas o orçamento permitiu a produção de alguns efeitos visuais interessantes.
Em 1991, “Khraniteli” (“Guardiões [do Anel]”), uma minissérie soviética de televisão, também fez sucesso. Outro criador do grupo de rock “Akvarium”, Andrêi Românov foi encarregado de compor a trilha sonora.
Acreditou-se por muito tempo que as gravações tinham sido perdidas, mas em 2021 ela ressurgiu das cinzas na plataforma de vídeos on-line YouTube. Seu reaparecimento chamou a atenção da mídia ocidental, e a revista “Variety” publicou uma matéria inteira sobre as filmagens.
No final da década de 1980, vários clubes juvenis de cosplay e contracultura tinham surgido, entre eles os dos “communars” - os primeiros entusiastas do RPG na URSS — e até hippies.
Em 1990, foram realizados os primeiros jogos de RPG de “O Hobbit”, nos arredores de Krasnoiarsk, na Sibéria. Mais tarde, a regularidade do evento se tornou anual.
Na Moscou dos anos 1990, o ponto de encontro tradicional dos fãs de Tolkien era o parque Neskutchny Sad — ao qual eles se referiam como “Eglador”, em homenagem ao primeiro reino élfico da Terra Média.
Todas as quintas-feiras, adolescentes e jovens se reuniam com suas capas feitas de cortinas e escudos feitos de placas de trânsito.
Os fãs de Tolkien ganharam um novo sopro de vida quando a famosa trilogia de Peter Jackson chegou aos cinemas, há 20 anos. De acordo com o censo de 2002, cerca de 600.000 russos se identificavam como Elfos, Hobbits ou outras nacionalidades fictícias.
Muito além daqueles que usavam capas élficas e deixavam o cabelo crescer, tinha até quem fizesse cirurgia plástica para alongar as orelhas!
Mas nem todos os fãs de Tolkien são fanáticos por RPG. Há entre eles quem escreva livros, poesias e canções dedicados ao mundo de Tolkien. Em 2017, por exemplo, uma ópera baseada em “O Silmarillion” estreou no metrô de Moscou, em língua élfica, com trilha sonora da Orquestra Presidencial Russa. A banda folclórica “Melnitsa” e a banda de metal “Epidemia” também adotam a temática de Tolkien em suas músicas.
Entre os fãs de Tolkien há até aqueles que estudam o mundo criado pelo escritor, sua biografia, traduzem obras inéditas dele e realizam conferências e seminários, além de defenderem teses e escreverem monografias sobre o autor.
Ópera "Silmarillion: Em memória de Tolkien" na estação de metrô Delovoi Tsentr, em Moscou.
Aleksandr Avilov/Agência MoskvaLEIA TAMBÉM: Góticos, emos e outras subculturas: onde foram parar na Rússia?
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