Por que não há privacidade na Rússia?

Estilo de vida
ALEKSANDRA GÚZEVA
Russos versados em Brasil e vice-versa dizem que os dois países são muito parecidos, apesar do clima. E são mesmo — inclusive nesse quesito!

“Quando você vai ter filhos?”, “como você engordou!”, “não seja tão sensível!”. Esse é o tipo de frase que você pode ouvir diariamente na Rússia (e em qualquer ponto de ônibus em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte...)!

Mas o que é considerado uma invasão do espaço pessoal e da privacidade em quase toda Europa e América do Norte é amenizado como característica cultural nesses países.

Acontece frequentemente em filas para o caixa: apesar da pandemia, alguém provavelmente está respirando praticamente grudado no seu pescoço ou te empurrando com a bolsa. Muita gente ainda hoje sofre pressão da própria família, com perguntas como “quando é o casamento?” ou “quando chegam os bebês?”. E até mesmo tentam dar pitaco na vida dos filhos adultos: desde a escolha da profissão ou do parceiro até a arrumação de seus apartamentos ou estilo de vida.

Nascido na URSS

Uma piada popular na Rússia é assim: “Por que não se pode fazer sexo na Praça Vermelha?” A resposta é: “Porque os conselhos irão torturá-lo!” (um jogo de palavras com “soviet”, que significa, ao mesmo tempo, “conselho” de “opinião” e “conselho” de “reunião”). É uma herança do “País dos Sovietes” que, curiosamente, se estende a muitos outros que sempre estiveram sob guarda-chuvas capitalistas como o Brasil.

Mas há uma explicação muito plausível para essa coincidência: “Durante a era soviética, a cultura de trabalhadores e camponeses, ou seja, da maioria, tornou-se dominante. E o comportamento característico dessas classes se tornou a norma. Para eles, os rendimentos de uma pessoa ou as relações intrafamiliares não eram tabus”, explica Natália Tíkhonova, pesquisadora-chefe do Centro de Estudos de Classe da Escola Superior de Economia.

O surgimento dos apartamentos comunais soviéticos privava completamente as pessoas de privacidade. Após a Revolução, luxuosos apartamentos e mansões aristocráticas foram divididos: cada cômodo tinha um inquilino diferente ou até mesmo uma família inteira vivendo ali. O chuveiro, o banheiro e a cozinha tinham que ser compartilhados com os outros inquilinos. Isso fazia parte dos esforços para eliminar rapidamente a injustiça social.

Assim, quando uma grande quantidade de famílias começou a ser designada a acomodações individuais, na década de 1950, era um fenômeno completamente novo viver em um apartamento separado de outras famílias, mesmo que ele fosse pequeno e simples.

Além disso, existia na URSS um sistema de controle dos cidadãos. Um indivíduo infiel no casamento ou alcoólatra, homem ou mulher, podia acabar convocado para um “tribunal camaradesco” no trabalho ou ser expulso do Partido Comunista. Aqueles que não obtinham um bom desempenho na escola ou na universidade podiam ser colocados sob a chefia dos mais “nerds”.

Como resultado dos muitos anos de intrusão na vida privada, que entrou em extinção, não havia nenhuma noção de privacidade na Rússia. Isso persiste até hoje.

Não existe uma palavra em russo para ‘privacidade’

“Não vou sentir saudades das pessoas respirando no meu pescoço na fila da farmácia, perguntando por que eu escolhi um remédio tão caro... (Em russo, não existe a palavra ‘privacy’?)”, escreveu a correspondente norte-americana Julia Ioffe quando retornou aos Estados Unidos depois de vários anos trabalhando na Rússia.

Os dicionários traduzem a palavra inglesa para “privacidade” como “estar sozinho e sem ser perturbado: o direito à liberdade quanto à intrusão ou atenção pública”. Em outras palavras, é o direito de evitar a atenção intrusiva de outras pessoas.

De acordo com linguistas, a palavra realmente não tem um equivalente exato na língua russa, nem mesmo no estrangeirismo “privátni”.

A linguista Tatiana Larina propõe a noção de "avtonomia litchnosti" (autonomia pessoal) como equivalente. Na língua inglesa, esse direito de ficar sozinho é um fenômeno cultural importante, já que existe até o ditado “minha casa é meu castelo”. Mas, na cultura russa, essa noção não é muito difundida, já que na Rússia frequentemente apenas os advogados conhecem o princípio da inviolabilidade da vida privada.

Desrespeito pelo espaço pessoal

Apesar da pandemia, muita gente na Rússia não consegue seguir o distanciamento social. Isso acontece com muita frequência em filas, onde pessoas das gerações mais velhas se espremem contra as que estão a sua frente até quase se tocarem.

“Faz pouco tempo, eu até cheguei a pedir para uma mulher manter a distância, mas a resposta dela foi bufar com raiva", conta a contadora moscovita Elena. “Muita gente pensa que se mantiver distância alguém vai entrar e roubar o lugar na fila. Isso é um legado soviético, e o mesmo acontece na ruas com motoristas”, completa.

Outra provação para pessoas sensíveis à ideia de privacidade está no transporte público. No horário de pico, em qualquer metrô do mundo há uma multidão de pessoas comprimidas como numa lata de sardinha.

Mas, mesmo nessas situações, deve ser possível seguir certas regras de decoro. “Uma vez eu estava sentado no metrô e uma mulher parada na minha frente não parava de me bater com uma sacola enorme e suja. Pedi para ela tomar cuidado com aquilo, mas ela ficou furiosa e disse que não tinha onde colocar a bolsa, e que se eu não estava gostando devia ir de carro”, conta a aposentada moscovita Aleksandra.

Choque cultural

Os russos em geral se acostumam com esses modos, mas estrangeiros no país ainda se chocam. A jornalista italiana Lucia, que viveu na Rússia por muitos anos, conta, por exemplo, que a administradora do alojamento da Universidade Estatal Russa de Humanidades, onde ela estudou, entrava em seu quarto sem sequer bater. Ela podia estar enrolada na toalha ou de pijama, mas isso não parecia incomodar a funcionária. "Meus amigos me explicaram que isso era parte da mentalidade soviética, em que não existia um conceito de vida privada", diz Lucia.

O francês Erwann viveu em várias cidades russas e experimentou por si mesmo essa mesma "peculiaridade cultural" dos russos com tanta frequência que até deixou de se surpreender. O exemplo mais marcante aconteceu com ele em Níjni Nôvgorod. Erwann foi estudante ali por um ano inteiro e alugou um apartamento perto da universidade, onde o senhorio o tratava como um filho desde o início... e de forma paternal começou a aparecer sem avisar de manhã cedo todos os domingos, quando ficava conversando o dia todo. De acordo com Erwann, na França as pessoas pelo menos avisam antes de aparecer e, na maioria das vezes, marcam as visitas com antecedência.

Uma provação inevitável para os estrangeiros também está nas perguntas íntimas colocadas por pessoas que elas mal conhecem. “Não sei quantas vezes me perguntaram ‘você é casado?’ um minuto depois de eu conhecer a pessoa”, diz Erwann, rindo.

Lucia diz que a princípio se irritava com perguntas excessivamente pessoais de pessoas que mal conhecia: Quanto ela ganhava? Planejava se casar e ter filhos? Mas, depois, ela também se acostumou e parou de ficar surpresa ou irritada.

"Sim, na Rússia até os médicos podem ultrapassar dos limites. O ginecologista pergunta toda vez quando você planeja ter filhos e, se você responder que não planeja, ele perguntará o motivo”, diz a russa Maria, que cresceu nos EUA e já morou em vários países.

Ela aconselha as pessoas a não levarem a mal esse tipo de pergunta. “Os russos estão normalmente interessados ​​nas outras pessoas, são francos e dispostos a ajudar. Não querem invadir seu espaço pessoal ou colocá-lo em uma posição incômoda. É só uma espécie de ‘marca nacional’, digamos. Aprendi a não levar a sério essas coisas”, diz.

A moda da privacidade

Antes da Revolução, a privacidade era um privilégio da nobreza e, nos tempos soviéticos, dos círculos intelectuais educados.

“Ultimamente, a psicoterapia é frequentemente buscada por pessoas com questões relacionadas à separação e ao estabelecimento de limites a entes queridos. Muita gente acha que os pais são muito controladores ou continuam a viver dentro de suas cabeças, mesmo depois de irem morar em outras casas”, diz a psicóloga Galina Laicheva.

Além disso, a psicóloga diz que trabalhar os sentimentos e desenvolver a inteligência emocional, em geral, está se tornando uma demanda e até mesmo “entrando na moda”.

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