Rússia declara guerra às patinetes elétricas

Kira Lissítskaia (Foto: Aleksandr Avilov/Agência Moskva; Iliá Pitalev/Sputnik)
Silencioso, rápido e mortal. Há vários anos, as autoridades russas vêm tentando se familiarizar com esse novo modo de transporte individual. Com pouco sucesso. O conflito atingiu agora um estágio crítico.

Assim como no Brasil, as patinetes elétricas se tornam cada vez mais populares na Rússia, especialmente durante a pandemia: em apenas um mês, de março a abril de 2020, a demanda por elas cresceu 350% e, no final do ano, ultrapassaram as bicicletas no mercado de aluguel. No entanto, essa popularidade logo se tornou problemática. 

Depois de uma série de incidentes, que resultaram inclusive em acusações e processos criminais, diversas autoridades e cidadãos vêm demonstrando insatisfação com a tendência. Muitos sugerem a introdução de zonas livres de patinetes elétricas, comparando esses veículos modernos a armas não letais.

“Eu percebi que patinetes elétricas são as armas não letais do mundo dos veículos”

As patinetes elétricas se tornaram um dos temas mais quentes na Rússia neste verão. O motivo? Fato é que elas não são, de fato, não letais. Nada menos que cinco pessoas morreram em decorrência de ferimentos relacionados a patinetes nos últimos seis meses.

“Eu estava andando pela rua e os vi correndo atrás mim em duplas e trios. Tive que parar porque não conseguia avaliar sua velocidade ou trajetória. Uma coisa é se você consegue vê-los, mas é algo totalmente diferente quando esses figurões vêm correndo por trás. É terrível. Você começa a se irritar com as leis, ou melhor, a falta delas. Os direitos dos pedestres em Moscou são ignorados há muito tempo”, diz a moscovita Olga Vovikova.

O primeiro serviço de aluguel de patinetes elétricas da Rússia, Dilisamokat, apareceu em Moscou no verão de 2018, e a inauguração contou com a presença do prefeito da cidade, Serguêi Sobiânin. Desde então, o mercado cresce de forma constante, e a lista dos maiores provedores do serviço se aproxima de duas dezenas espalhados por todo o país. Paralelamente, o número de acidentes envolvendo patinadores e pedestres também cresceu na mesma proporção. Alguns resultaram em ferimentos graves e até mortes.

David Zaleev, solista de balé do Teatro Mariínski, estava bêbado dirigindo seu patinete na calçada, atropelou um transeunte e caiu. Como resultado, passou mais de duas semanas em coma. E este é apenas um exemplo recente. Nos dias 1º e 2 de junho, em diferentes bairros de São Petersburgo, dois meninos de 4 anos e uma menina de 5 anos foram atropelados por patinetes elétricas; todas as crianças foram hospitalizadas, duas em estado grave. Outro episódio emblemático aconteceu com Maksim Molodchi, um funcionário do serviço E-motion que foi atropelado na calçada e quase perdeu a perna devido a uma ruptura do tendão. “O patinete Ninebot pesava 40 quilos e o cara que o guiava pesava cerca de 80 quilos. Ele caiu e quebrou o crânio. Essa é a lesão mais comum de quem dirige patinete”, diz Molodchi.

De acordo com estatísticas do Ministério de Assuntos Internos da Rússia, durante os seis primeiros meses de 2021, ocorreram no país 180 acidentes envolvendo patinetes elétricas, dos quais cinco resultaram em morte.

Silenciosos, pesados e, em muitos casos, capazes de acelerar até 30-50 km/h em apenas alguns segundos, as patinetes elétricas se tornaram motivo de medo nas cidades e alvo das autoridades, devido à ausência de leis que regulamentem o uso do transporte. 

Sem habilitação, capacete ou ciclovia

O compartilhamento de meios de transporte ainda não é estritamente regulamentado na Rússia, sem status legal claro em nível federal, apesar de a discussão sobre a necessidade de emendas se arrastar há anos. Atualmente, esse modo de transporte é considerado equivalente aos pedestres auxiliados por veículos (ou seja, pessoas em cadeiras de rodas, empurrando carrinho de bebê, patins etc.). Por isso, os motoristas de patinete elétrica têm o direito de circular em calçadas, ciclovias e áreas pedonais; é apenas na ausência destas que dividem espaço com os carros. 

Além disso, qualquer pessoa pode alugar uma patinete elétrica ou usar a sua própria. Os serviços de locação não exigem documentos no momento do cadastro, somente cartão de crédito. O usuário declara que tem “pelo menos 18 anos”, mas não apresenta documento que comprove a informação. Se a potência do motor elétrico não ultrapassar 250 watts, não há necessidade de carteira de motorista, e o equipamento de proteção também é opcional.

“A maior parte da atual controvérsia em torno das patinetes vêm do status legal indefinido dos motoristas”, concorda Iúlia Kamoilik, a assessora de imprensa da empresa de compartilhamento de patinetes Whoosh. “De acordo com as leis, eles podem ser classificados como pedestres, ciclistas ou, no caso de patinetes particulares potentes, usuários de ciclomotores.”

O assunto, porém, chamou a atenção do Comitê de Investigação (CI), que passou a tratar do problema com processos penais.

Casos criminais contra empresas

Em meados de maio, o CI interveio depois que dois pedestres foram atropelados por patinetes elétricas na mesma noite na Nevsky Prospekt, a avenida mais importante de São Petersburgo. Os culpados foram identificados, e um deles acabou sendo acusado de vandalismo. Mas o segundo processo criminal foi movido contra a Whoosh, uma das maiores e mais bem-sucedidas empresas de compartilhamento de transporte da Rússia, por não cumprimento dos requisitos de segurança.

No início de junho, os investigadores já haviam feito buscas nos escritórios e depósitos da Whoosh e de outras empresas, entre elas Urent, Eleven, Mangoo e Busyfly. No total, foram abertos seis processos criminais relacionados a lesões por negligência e vandalismo. Em seguida, investigações semelhantes foram conduzidas em outras regiões do país.

Na manhã de 9 de junho, os moradores de São Petersburgo descobriram que os aplicativos de compartilhamento de patinetes não estavam mais funcionando. O chefe do Comitê de Transporte de São Petersburgo, Kirill Poliakov, informou que as próprias empresas haviam retirado os veículos das ruas por causa das ações do CI. 

Uma fonte da revista Forbes afirmou, porém, que as patinetes foram removidas após ultimato do órgão: “O CI deixou claro que se não as removêssemos, eles nos removeriam”.

Desacelerar ou aposentar o patinete?

Até agora, as locadoras estão tentando negociar a introdução de zonas lentas e vermelhas junto às autoridades locais até que regras gerais sejam oficialmente adotadas.

A Câmara Cívica, um análogo do Ministério Público na Rússia, propõe classificar as patinetes elétricas mais potentes como ciclomotores e que as autoridades de São Petersburgo registrem os usuários e criem um banco de dados de infratores. O Ministério dos Transportes discute a limitação da velocidade nas calçadas a 20 km/h e a introdução da proibição de circular com patinetes elétricas em parques, próximo a estações de metrô, trens e shoppings.

Mas os opositores desse modo de transporte não estão satisfeitos com as medidas. “Quando eu atravesso a rua, sei do perigo e olho ao redor. Caminhando pela calçada, não preciso ficar de olho em algum imbecil voando na minha direção a uma velocidade de 50 km/h. Na calçada, tenho o direito de estar imerso no meu celular”, escreve o usuário Madegghead.

Segundo Igor Serkin, do escritório de advocacia Cliff, é injusto colocar toda a culpa nas empresas de compartilhamento de patinete. “Não há requisitos de segurança definidos para as locadoras. Os gêneros alimentícios os têm, assim como os serviços especializados, como os parques de diversões. Mas que perigo está associado aos serviços de aluguel? Se você aluga um carro, a locadora deve monitorar a forma como você dirige? Não. Deve apenas verificar sua carta de motorista. No caso de patinetes elétricas, esse documento [ainda] não existe.”

A falta de infraestrutura é também citada como parte do problema. Em alguns países europeus, por exemplo, as patinetes elétricas são permitidas apenas em ciclovias.

Um dos críticos dessa ausência de espaço adequado para esses veículos é Aleksandr Ossipov, líder do movimento público Transporte Elétrico Pequeno da Rússia. “Como parte do nosso movimento, pilotamos patinetes elétricas em todas as principais cidades da Rússia, de Vladivostok a Kaliningrado, e percebemos que não havia infraestrutura adequada, nem sequer em Moscou e São Petersburgo. As ciclovias são uma piada; elas começam e terminam do nada, e os patinadores têm que usar a calçada e outras áreas inseguras”, diz.

Além disso, se as patinetes elétricas forem reconhecidas como veículos e banidas das calçadas e parques, isso “acabará com o modelo de negócio de aluguel”, afirma Iúri Nikolaev, que administra o portal on-line Trushering. A maioria das pessoas as usam para diversão.

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